Aos 20 anos de idade não sabia ler nem escrever. Sobre a primeira vez que se sentou numa sala de aula escreveria mais tarde: “O meu lugar não era ali. Vim de um clã de chulos, ladrões, contrabandistas e putas. Era como se eu estivesse num lugar sagrado e a minha presença o conspurcasse, apesar de provavelmente também haver entre os meus colegas quem fosse filho desses desgraçados todos juntos”. Mais do que nenhum outro escritor árabe do seu tempo, Muhammad Chukri parecia destinado a ser um marginal aos olhos da sociedade em que nasceu e viveu. Filho das ruas e dos becos sem saída, conseguiu, no entanto, graças a uma sensibilidade extraordinária e a uma ferocidade insaciável de leitura, tornar-se escritor – e uma das vozes incontornáveis vozes da literatura árabe. É ao seu universo literário que regressamos agora com “Tempo de Erros”, acabado de lançar à estampa pela Antígona, depois da editora o ter publicado pela primeira vez em Portugal, com “Pão Seco”, obra seminal no seu percurso.

O novo título, publicado originalmente em 1992, prossegue o primeiro, como segundo volume de uma autobiografia crua e violenta, escrita espaçadamente em forma de trilogia [fica a faltar a publicação de Rostos (2000)], porventura um dos retratos mais peculiares da pobreza e da miséria vividos em Marrocos, antes e depois da sua independência, retratado a vida do escritor como um pedinte, ladrão, contrabandista, professor e boémio. Mas é mais do que isso: “Tempo de Erros”, tal como os restantes livros de cariz memorialista do escritor, é um manifesto de escrita torrencial, alheio a tradições literárias ou à normatividade gramatical e de sintaxe, que se constrói – como escreve Chukri – através da “obscuridade e o enigma em vez do claro e do simples, o desconhecido em vez do óbvio, a miragem em vez da água”.

Nascido em 1935 (segundo os registos oficiais, ainda que o próprio duvidasse desse ano de nascença) numa pequena aldeia nas montanhas do Rife, em Marrocos, durante os anos de ferro do protetorado espanhol, Muhammad Chukri viveu uma infância e juventude marcadas pela fome extrema, a violência absurda e a fuga para o desconhecido. De espírito nómada, passou por Tetuão, Larache, Orão e Tânger, esta última cidade onde viveu grande parte da sua vida, entrosado no círculo literário e cosmopolita que ali se formou a partir dos anos 60. A partir do submundo ou à espreita na superfície com olhar atento e aguçado, foi na escrita que encontrou refúgio e salvação: uma escrita “desde o interior da pobreza”, como descreveu o escritor basco Bernardo Atxaga, dura e áspera, seca como o pão sem conduto, de uma ferocidade ávida e amoralidade inclemente.

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