Em setembro, o Chile assinala os 50 anos do golpe de Estado que colocou o regime ditatorial de Augusto Pinochet no poder durante 17 anos. Mas setembro marca também um outro acontecimento, que estava há cinco décadas por concluir: a morte de Víctor Jara, cantautor e apoiante de Salvador Allende. Foi preciso chegar a 2023 para que o processo tivesse uma conclusão: sete ex-militares foram condenados pelo rapto e homicídio do artista, uma das vozes maiores da “nova canção chilena”.

A condenação final é do Supremo Tribunal do Chile, que rejeitou os argumentos da defesa contra a detenção proferida pelo Tribunal de Recurso, em novembro de 2021. Seis ex-militares — Raúl Jofré González, Edwin Dimter Bianchi, Nelson Haase Mazzei, Ernesto Bethke Wulf, Juan Jara Quintana e Hernán Chacón Soto — foram condenados a 25 anos de prisão pelo sequestro (10 anos) e homicídio (15 anos) não só de Víctor Jara, como também do diretor do Serviço Prisional na altura, Littré Quiroga. Já o ex-oficial Rolando Melo Silva foi condenado a cinco anos e um dia e três anos e um dia de prisão por ter sido cúmplice dos homicídios e dos raptos, respetivamente.

Os condenados têm entre 73 e 86 anos, segundo o El País, e devem todos cumprir pena de prisão efetiva. A maior parte deles fez carreira no Exército, onde tiveram posições de liderança e chefia. Estão, hoje, todos reformados.

Jara foi detido a 12 de setembro de 1973, um dia depois do golpe de Estado contra o Presidente socialista Salvador Allende, e enviado para o Estádio Chile, para onde eram levados os apoiantes de Salvador Allende. Aí, foi torturado, acabando por morrer cinco dias depois do golpe de Estado — Jara sofreu 56 fraturas ósseas e 44 ferimentos causados por balas; já Quiroga, sofreu 47 fraturas e foi baleado 23 vezes.

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A sentença refere que entre 13 e 15 de setembro, os dois detidos foram interrogados “sem qualquer procedimento judicial e/ou administrativo prévio”. No caso de Víctor Jara, “o principal motivo das agressões foi a sua atividade artística, cultural e política, estreitamente ligada ao governo recentemente derrubado”. O cantor foi sujeito a “torturas físicas, sendo os golpes mais graves os que sofreu no rosto e nas mãos”. Foi sujeito a pontapés, murros e golpes com armas.

O corpo de Jara foi encontrado a 16 de setembro, junto ao Cemitério Metropolitano, e foi enterrado clandestinamente. Em 2009, 36 anos após a sua morte, a justiça chilena ordenou a exumação dos restos mortais para que fossem enterrados de forma digna, numa homenagem oficial. Nela participou a ex-Presidente chilena, Michelle Bachelet.

Littré Quiroga, que sofreu dos mesmos maus-tratos, foi acusado pela detenção e tortura de que teria sido vítima o general do Exército Roberto Viaux, “o que agravou os castigos que lhe foram infligidos”.

Condenados negam crimes

O processo judicial é exemplo da demora com que o sistema judicial chileno está a lidar com as vítimas da ditadura de Pinochet, escreve o El País. As primeiras queixas à justiça foram apresentadas em 1978, no caso de Víctor Jara, e em 1987, no caso de Littré Quiroga. Mas os processos ficaram suspensos durante anos. Em 1998, as famílias apresentaram novas ações legais, que só agora conhecem uma conclusão.

Jara era militante do Partido Comunista e colaborou com o governo da Unidade Popular do antigo Presidente socialista Salvador Allende. Foi autor de canções como “El derecho de vivir en paz” e “Te recuerdo Amanda”. Casado com Joan Jara, pais de duas filhas, tinha 40 anos quando foi assassinado.

Já Littré Quiroga tinha 33 anos. No dia em que foi detido escreveu três cartas — à sua mulher, Silvia, à mãe e aos três filhos. Na dos filhos, pedia-lhes que se portassem “bem”. “Estudem muito e ajudem a vossa mãe. O papá não vos vai poder ver. Não vejam tanta televisão e portem-se bem, como bons filhos. Adeus e não se esqueçam do papá”, escreveu, numa carta citada pelo El País.

Raúl Aníbal Jofré González, de 75 anos, é um dos condenados, e sempre, como todos os arguidos, negou a autoria dos crimes. O tribunal sublinha, porém, que tinha uma posição de comando no Estádio Chile e que participou nas decisões que levaram à tortura e morte dos dois detidos.

Edwin Armando Roger Dimter Bianchi, de 73 anos, também está entre os condenados. Foi identificado como uma pessoa violenta “que agredia constantemente os prisioneiros, tanto física como mentalmente”. Também Nelson Edgardo Haase Mazzei, de 77 anos, negou sempre os crimes, mas testemunhas dizem que se gabava da morte de Jara.

Juan Renán Jara Quintana, de 75 anos, também era descrito como sendo violento — tanto que lhe foi negado o acesso ao Estádio devido à violência que exercia sobre os detidos. Já Rolando Humberto Camilo Melo Silva, de 83 anos, foi condenado por omitir as detenções ilegais.

Em 2018, um tribunal da Florida tinha condenado um outro ex-militar, Pedro Pablo Barrientos Nuñez, pelo assassinato de Jara.

Condenado o assassino de Víctor Jara, 43 anos depois da morte do cantor chileno