Dos encantos dos festivais: por vezes, geram pequenos fenómenos inesperados, com aqueles concertos que, sem aviso, parecem pertencer a um universo paralelo face ao cartaz, mas que se revelam repletos de fãs devotos. No segundo dia do Kalorama 2023, tal fenómeno foi protagonizado pela artista da Flórida Ethel Cain, que, no ano passado, lançou o seu excelente disco de estreia, Preacher’s Daughter, e que, esta sexta-feira, atuou pela primeira vez em Portugal.
Ainda que não fosse o concerto mais concorrido do Palco San Miguel — no dia anterior, a hora de M83 estava tão lotada que os que estavam nas filas dianteiras demoraram cerca de dez minutos a abandonar o espaço — aqueles que marcaram presença sabiam bem ao que iam e, desde o início, percorreram as palavras e as emoções dos temas da jovem artista de 25 anos.
Hayden Silas Anhedönia de seu nome, tem uma história peculiar. Nascida numa família conservadora pertencente à igreja da Convenção Batista do Sul, cresceu rodeada por fortes influências religiosas. O primeiro contacto com a música teve-o no coro da igreja onde o seu pai era Diácono.
Num dia a dia feito de padrões e regras, aos 12 anos assumiu-se homossexual e, aos 20, uma mulher transexual. Pelo meio, um percurso conturbado feito de relações com histórias difíceis, inspirou os talentos criativos para exorcizar demónios através das canções, sob influências como o rock clássico, o gospel, a country, o indie rock e até referências de subgéneros mais de nicho como o doom metal ou o post rock. E tudo isto faz torna um concerto de Ethel Cain num momento de catarse singular.
A artista de Tallahassee conta também com uma sensibilidade pop rara — como ouvimos em “American Teenager” — um talento que lhe permite estabelecer ligações com diferentes formas de composição, distintas bases de seguidores e até outros artistas. Por exemplo, um dos pontos altos do concerto aconteceu quando Ethel convidou a palco Florence Welch (mais tarde, esta também marcou presença no concerto da banda britânica para fazer um dueto e cantar “Morning Elvis”) e ambas interpretaram uma arrepiante versão de “Thoroughfare”.
Ainda sobre Florence: um dos nomes da noite, inevitavelmente. Operada de urgência no final de agosto, correu, saltou e tratou de assegurar uma sessão de esclarecimento espiritual-pop como se nada tivesse acontecido, como se de outra forma não pudesse acontecer. As canções com a marca Florence and The Machine vivem de um trabalho de estúdio minucioso e detalhado, de uma técnica irrepreensível e também de uma assinalável capacidade emocional. Tudo junto, em palco, forma um espectáculo que nunca evita o carimbo “concerto da noite”.
A britânica, dada às relações entre os seus fiéis e a obra que assina, explicou mesmo o ritual de conexão que merece ser estabelecido durante a interpretação de “Dog Days Are Over”. Em primeiro lugar, insistia, era preciso guardar o telemóvel; depois, olhar para as pessoas em volta a declarar o nosso amor por elas; por fim, saltar até que deixássemos de sentir os joelhos. Uma espécie de crossfit pop das florestas britânicas, não tanto para alcançar um estado mental e emocional especial, mas para dizer que Florence têm o público na mão. Este rende-se com facilidade, entrega-se às canções e jura lealdade até ao próximo encontro. É uma relação perfeita.
O outro cabeça de cartaz deste dia era Aphex Twin, pequeno grande detalhe fácil de perceber, não só pela presença massiva de t-shirts e camisolas com o icónico símbolo do produtor irlandês, mas também pela quantidade de pessoas que parecia estar vestida e pronta para partir chão numa rave.
Às vezes não é fácil definir a música do senhor Aphex — Richard David James — Twin. Dois festivaleiros mais confusos que se dirigiam para o Palco MEO antes do concerto tentavam decifrar o que podiam esperar da atuação, da forma mais esclarecida possível: “É uma vibe”.
Efetivamente, Aphex Twin depende muito da “vibe” que encontra pela frente. A música que faz é caótica e atinge decibéis semelhantes a um ataque sónico. Mas, para quem se entrega às suas excêntricas produções, tem garantida uma experiência de euforia e energia que poucos conseguem oferecer.
Acompanhado por efeitos visuais tão extravagantes quanto a sua música (por falar em extravagância: Fernando Mendes, Cristiano Ronaldo ou Jorge Jesus foram inclusive alguns dos protagonistas dos seus vídeos) e um jogo de luzes perigoso para olhos gentis e sensíveis, este foi um dos espetáculos mais memoráveis da curta vida do Kalorama.
E assinalemos o mais do que assinalável: a corajosa tentativa de muitos que chegaram pouco antes do arranque do concerto de Aphex Twin, vindos diretamente da Altice Arena, onde Björk tinha atuado na mesma noite.
Para os amantes da eletrónica estava ainda guardada a performance de Arca. A primeira parte do espetáculo foi marcada por um DJ set convencional, que foi de Daft Punk a Death Grips, passando por funk brega e samba, culminando num espetáculo de reggaeton onde a cantora deixou tudo em palco, momentos de danças mais ousadas num baloiço incluídos
O concerto de Arca fez-se também acompanhar por uma forte componente visual, onde eram projetadas diversas imagens da artista, ajudando a complementar a narrativa de identidade de género que explora na música que faz. O final do espetáculo foi marcado por um improviso da venezuelana ao piano, entre performance e honestidade sentimental, ideal para embalar o mundo particular que a artista concebe ao vivo.
Os nossos bons e eternos amigos Blur (e uma revolução chamada Amyl)
O Kalorama termina este sábado e, neste derradeiro dia, atuam artistas como Arcade Fire, Foals e Siouxsie.