A questão chegaria já perto do fim da conversa e pela voz do público, que estava proibido de fazer perguntas. “Woody Allen, quando é que faz um filme em Portugal?”, lançou alguém. O humorista Ricardo Araújo Pereira, o interlocutor da sessão organizada com o realizador norte-americano, de 87 anos, esta quinta-feira na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, fez o favor de repetir para o cineasta. Estaria Woody Allen interessado em filmar em Portugal?

“Bem, é preciso ter uma ideia para [fazer um filme em] Portugal. Não pode ser uma ideia que se possa fazer em Nova Iorque, Paris ou Londres e forçar para que seja em Portugal. É preciso uma ideia que, quando o filme saia, só pudesse mesmo ter sido feito em Portugal”, respondeu o cineasta que está prestes a estrear Golpe de Sorte, rodado inteiramente em França e em francês.

A ideia não foi totalmente descartada por Woody Allen, que está no país para concertos com a New Orleans Jazz Band (Allen toca clarinete), atuando na noite desta quinta-feira no Sagres Campo Pequeno, em Lisboa, depois de ter passado pelo Super Bock Arena, no Porto.

“Estive no Porto esta manhã e a noite passada, o Porto é uma cidade maravilhosa, nunca lá tinha estado, apaixonei-me, foi fantástico. Já estive em Lisboa algumas vezes, também adoro. Se tivesse uma ideia que funcionasse aqui, adoraria. A minha família adora cá vir, e eu adorava passar aqui dois, três meses, em vez de vir de vez em quando passar alguns dias. Se encontrar uma ideia, talvez uma ideia com sardinhas…”, acrescentou, provocando a gargalhada geral da audiência.

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Foi esse tom bem-humorado que pautou a conversa entre o realizador norte-americano e o humorista português, numa sessão esgotada que deixou de fora largas dezenas de pessoas. A 60 minutos da sessão, a fila já ultrapassava toda a Rua Barata Salgueiro, galgando pela Avenida da Liberdade abaixo. Rapidamente se encheu a Sala M. Félix Ribeiro, com capacidade para 227 lugares — fonte da Cinemateca Portuguesa disse à Lusa que tinham sido disponibilizados cerca de 150 bilhetes para o público e que os restantes seriam para convidados.

Henrique Madruga, 20 anos, conseguiu um bom lugar na fila, e chegou apenas uma hora antes. O entusiasmo de ver o realizador era igualado pela oportunidade de ver a obra que era exibida após a conversa, Manhattan (1979), a que o jovem esperava conseguir assistir numa sala de cinema. É o dia. Veio acompanhado de dois amigos, como muitos dos que se acumulavam à entrada. A polémica sobre as alegações de abusos sexuais levantadas pela filha adotiva, Dylan Farrow, nos anos 1990 e sobre as quais o realizador nunca foi judicialmente incriminado, ou os recentes comentários de Allen sobre o caso Hermoso-Rubiales (“é incompreensível que uma pessoa possa perder o emprego por beijar alguém”, disse em Veneza), não parecia importar para quem estava na longa fila (ou na sala, já que dias antes a editora frisava que a conversa versava exclusivamente sobre livros). “A arte é que interessa”, concordam estes três amigos.

Seria sobre a arte de escrever, comédia em particular, que Ricardo Araújo Pereira se debruçaria nas perguntas ao realizador de Annie Hall (1977) ou Meia-noite em Paris (2011). Uma máquina de escrever, uma Olympia verde, do humorista português, que estava sobre uma pequena mesa entre ambos, seria o mote para que Woody Allen recordasse a sua, da mesma marca. “Tudo o que escrevi foi numa máquina de escrever”, revelou o cineasta, que faz referência ao objeto na autobiografia A propósito de nada (Edições 70, chancela da Almedina, 2020).

O humorista evocou a ideia de “filtro cómico”, já explanada numa entrevista de Woody Allen à revista literária The Paris Review. “Com quase tudo o que me acontece tenho a tendência de pôr um filtro cómico. É uma forma de lidar com a vida a curto prazo, mas não tem efeitos a longo-prazo”, citou o comediante.

“É verdade que se se tem sentido de humor, um sentido de humor genuíno, em que se consegue fazer vida disso, pode-se passar uma vida inteira a entreter pessoas”, comentou o realizador. “Quando se vê tudo por um prisma cómico a toda a hora, ajuda a aliviar e a moderar as coisas terríveis da vida, a tristeza e a tragédia da vida. Ajuda um bocadinho”, sublinhou. “É como disse, a longo prazo não significa nada, porque estamos sempre dispostos para a próxima ronda de sofrimento que aí vem, mas ajuda no momento. É como pôr um penso rápido. Ajuda naquele momento.”

Filmes da Marvel? “Nunca vi nenhum, mas sou contra”

Convidado a recordar os seus dias enquanto comediante de stand-up, Allen admitiu: “Tenho saudades, mas nunca faria de novo. Sempre fui um escritor. Sou ótimo com coisas quando estou numa sala sozinho. Pratico clarinete numa sala sozinho, escrevo numa sala sozinho”.

Sabendo que o filme que se seguia à conversa era Manhattan, obra que Allen já por demais vezes criticou em entrevistas, o cineasta voltou a contar a história de como implorou aos estúdios que não divulgassem a película, oferecendo-se mesmo a realizar um novo filme inteiramente de graça. “Mas quiseram lançar o filme e foi um sucesso, em todo o mundo, e até hoje o filme é mostrado, em todo o lado, é um grande sucesso. Não disse nada, retirei-me, tudo bem. Há muitos filmes que fiz desde então, que prefiro, que acho que são filmes muito melhores. Mas as pessoas gostam do Manhattan. Gostam do filme. Considero isso uma sorte”, comentou.

A crítica extravasou a sua filmografia. Começou quando foi confrontado com uma entrevista recente a Terry Gilliam, que Ricardo Araújo Pereira conduziu, e em que o realizador de O Homem que Matou Dom Quixote (2018) admitiu estar farto de filmes da Marvel. Woody Allen não poupou a farpa: “Não estou teoricamente farto de filmes da Marvel, porque nunca os vi. Não me interessam por isso não vejo. Não gosto da ideia de filmes grandes de vários milhões de dólares. É uma coisa diferente… É uma indústria. Não tem nada a ver com filmes enquanto expressão artística”. E concluiu: “Nunca vi nenhum, mas sou contra”.

A segunda foi quando o antigo Gato Fedorento lançou: “Há alguns novos humoristas ou comediantes de que goste e a que preste atenção?”. Allen rapidamente contestou que era a “pessoa errada” para responder. “Tenho de dizer que não. Quando aparecem na televisão rio-me sempre, mas não há nenhum comparado… Pode ser uma coisa geracional, é possível, ninguém acha que os novos são tão bons como os antigos em nada, seja em carros, comediantes ou outra coisa qualquer”.

Se à mesa a conversa fluiu, fora dela somaram-se constragimentos. O evento, de entrada gratuita, era sujeito ao levantamento de bilhete, limitado a dois por pessoa. Segundo relatos feitos ao Observador, houve quem estivesse na fila desde as nove da manhã. À hora da sessão, não tardou para que se tornasse óbvio que os lugares seriam poucos para os que se encontravam nas imediações do local.

Houve quem protestasse por irregularidades nas filas, e quem acabasse reconduzido para a sala de imprensa — segundo informação enviada aos jornalistas pela Cinemateca Portuguesa, que cedeu o espaço para o evento, pelo Grupo Almedina, editora de Allen em Portugal, e pelo Folio — Festival Literário Internacional de Óbidos, co-organizadores do encontro, a sessão tratava-se, “na sua essência, de um encontro para os leitores”. Por isso, os jornalistas acreditados para cobertura do evento assistiram-no numa sala mais pequena, ao lado, através de transmissão em direto. Mas a projeção decorreu com vários problemas técnicos, com vários a abandonar o local por falta de condições para escutar o que decorria na sala contígua. A imprensa só seria conduzida para o espaço onde a conversa decorria já a meio da sessão.

Ao mesmo tempo, e contrariamente às informações veiculadas sobre a transmissão do encontro, um canal de Youtube dedicado à literatura transmitiu em direto todo o evento — finda a conversa, esse vídeo foi tornado privado.