Woody Allen apoio o movimento #MeToo — mas não incondicionalmente. Envolto em alguma polémica nos últimos anos, o cineasta norte-americano, de 87 anos, (que vai estar em Portugal a 14 de setembro) foi presença destacada no Festival de Cinema de Veneza, onde o seu mais recente filme, Golpe de Sorte, estreou fora de competição, e acabou por não escapar a questões sobre o movimento contra o abuso e assédio sexual na indústria cinematográfica, que também o tem visado em anos recentes.

Em entrevista à revista Variety, o realizador mostrou-se genericamente favorável a movimentos como o #MeToo, mas ressalvou que, no seu entender, nem todos os casos são iguais, classificando certas situações como “tolices”:

Acho que qualquer movimento que seja em benefício, que tenha um efeito positivo, por exemplo para as mulheres, é uma coisa boa. Mas quando se torna tolo, é tolo (…) Quando se torna demasiado extremista, a tentar transformar num problema coisas que, na verdade, a maior parte das pessoas não consideraria como uma situação ofensiva”, disse.

Nos últimos anos, a carreira de Allen foi afetada por repetidas alegações de abusos sexuais feitas pela sua filha adotiva, Dylan Farrow, e apoiadas pela mãe e ex-mulher do realizador, Mia Farrow. O caso remonta ao início da década de 1990, quando Dylan Farrow tinha 7 anos de idade, e chegou a ser investigado por duas vezes, tendo as autoridades optado por não acusar Woody Allen por falta de provas.

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No entanto, o advento do #MeToo tornou a colocar as alegações (que foram sempre mantidas por Dylan Farrow) nos holofotes, tornando o realizador numa espécie de persona non grata em Hollywood. Recentemente, a série documental “Allen v. Farrow” (2021), produzida pela HBO, aumentou ainda mais o escrutínio sobre o realizador, argumentista e ator.

“Allen vs Farrow”: as omissões, as revelações e as dúvidas de uma história que não chegou ao fim com um documentário

Woody Allen tem, pela sua parte, mantido sempre a inocência e, à Variety, disse que a prova está nas suas frequentes colaborações profissionais com mulheres ao longo das décadas. “Fiz 50 filmes. Sempre tive muito bons papéis para mulheres, sempre tive mulheres na equipa de rodagem, sempre lhes paguei exatamente o mesmo que pagámos aos homens, trabalhei com centenas de atrizes e nunca, nunca tive uma única queixa de alguma delas em nenhum momento.”

Em 2018, a Amazon rescindiu o seu acordo de produção e distribuição dos filmes do realizador, levando este a processar a empresa por quebra de contrato, defendendo que o término do acordo teve por base “uma alegação sem qualquer base real com mais de 25 anos” e exigindo uma compensação de 68 milhões de dólares (hoje equivalente a cerca de 75 milhões de euros). As duas partes acabaram por chegar a um acordo, mas certo é que os últimos filmes de Allen têm sido financiados fora dos Estados Unidos, com distribuição limitada no território norte-americano.

Apesar de admitir dificuldades em garantir financiamento no seu país, Allen garantiu que tal “não chega a ser impeditivo” de continuar a produzir os seus filmes. Ainda assim, este e outros fatores, como a idade, vão contribuindo para que o cineasta esteja a pensar na reforma. “Tenho tantas ideias para filmes que me apetece produzir, se fossem fáceis de financiar (…) mas, além disso, não sei se tenho a mesma energia para continuar a gastar muito do meu tempo a tentar angariar fundos”.

Caso decida adiar a reforma, o realizador levantou o véu no próximo projeto que tenha em mente — cuja ação decorrerá, justamente, na sua cidade-natal. “Acho que, se fizer outro filme, a ideia básica que tenho é em Nova Iorque, e é lá que o faria”.

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(Da esquerda para a direita) Valerie Lemercier, Vittorio Sotraro, Woodie Allen e Lou de Laage participaram na conferência de imprensa de Golpe de Sorte no Festival de Veneza

Woody Allen e “Golpe de Sorte” (ou, um americano em Paris): “Senti que era genuinamente um cineasta europeu”

A ideia de mais uma “história de Nova Iorque” do realizador foi também tema na conferência de imprensa de “Golpe de Sorte”, em Veneza, onde o filme teve direito a honras de estreia mundial. Allen garantiu que um novo filme rodado em território norte-americano não está fora de questão. “Se algum tipo sair das sombras e disser ‘vamos financiar o teu filme em Nova Iorque’ e obedecer às minhas condições, se houver alguém suficientemente tolo que concorde em fazer isso, então farei um filme em Nova Iorque”, disse.

Ao lado do diretor de fotografia Vittorio Storaro, seu colaborador habitual, e das atrizes Lou de Laage e Valerie Lemercier, que integram o elenco, o realizador centrou em si mesmo as atenções, enquanto foi falando das suas influências e do amor pelo cinema europeu. “Quando era mais novo, os filmes que mais nos impressionavam a nós que estávamos a começar e a querer ser realizadores eram os filmes europeus: franceses, italianos, suecos. Queríamos fazer filmes como os europeus”, contou.

As recordações do passado acabaram por servir para lamentar o presente, com Woody Allen a referir-se ao estado atual da indústria cinematográfica que, a seu ver, não atravessa uma boa fase. “Costumava haver três ou quatro filmes que estava morto por ver. Todas as semanas havia um filme de Truffaut, de Fellini, de Ingmar Bergman, de Kurosawa… agora, há pouquíssimos filmes europeus sequer a serem exibidos nos Estados Unidos”, disse o cineasta à comunicação social.

Talvez por isso, a ideia de fazer um filme como “Golpe de Sorte” — 100% em francês e rodado em Paris com um elenco composto por atores domésticos — o tenha seduzido. A ideia original até passava por fazer um filme sobre “dois americanos a viver em Paris”, mas Allen acabou por reconsiderar. “Comecei a pensar, ‘é o meu 50.º filme, e gosto tanto de Paris que o vou fazer em francês’. (…). Tive uma experiência maravilhosa e, depois, senti que era genuinamente um cineasta europeu”.

O realizador não fala uma palavra de francês, mas defendeu que isso não importa na hora de dirigir os atores. “Se virem um filme em japonês, conseguem perceber se as atuações são boas, realistas ou naturais, ou se são dramáticas e tolas, ou demasiado exageradas. Aqui é o mesmo. Conseguia perceber pela linguagem corporal e pela emoção dos atores, sem perceber a língua, quando estavam a ser realistas e quando não estavam”.

A experiência terá corrido tão bem que Allen não descartou a hipótese de voltar a rodar um filme que não na língua inglesa. “Se receber uma chamada de alguém num país diferente a dizer ‘financiamos o teu filme seu o fizeres em islandês’, ou outra língua qualquer… Se tive uma ideia que seja boa, é algo que posso considerar”, disse.

O novo filme de Woody Allen, “Golpe de Sorte”, inteiramente em francês e com nomes como Lou de Laage, Valerie Lemercier, Melvil Poupaud e Niels Schneider no elenco, tem estreia marcada em Portugal para o próximo dia 5 de outubro e será distribuído pela NOS Audiovisuais. Antes disso, o realizador vai estar na Cinemateca Portuguesa a 14 de setembro para uma conversa com o humorista Ricardo Araújo Pereira, seguida de uma projeção de um dos seus clássicos da década de 1970, Manhattan (1979). A 13 e 14 de setembro, Woody Allen atua com a New Orleans Jazz Band no Porto e em Lisboa.

Woody Allen e Ricardo Araújo Pereira vão estar à conversa na Cinemateca