O estudo sobre a preponderância da raspadinha na sociedade portuguesa vai ser entregue ao Governo, à Santa Casa da Misericórdia e à Assembleia da República e, com ele, o presidente do Conselho Económico e Social (CES) acredita que “haverá consequências” e adoção de medidas. Se não for por iniciativa do próprio Governo, “a sociedade vai exigir soluções”, disse Francisco Assis, durante a apresentação do relatório “Quem Paga a Raspadinha”, que conclui que mais de metade dos apostadores deste tipo de jogo ganha menos de 1.000 euros por mês.
Francisco Assis diz que, na globalidade, não ficou surpreendido com as conclusões. “Tínhamos a suspeita de que havia um problema sério com a raspadinha e, particularmente, com o jogo em Portugal”, afirma. Essa suspeita foi confirmada. Ficou, sim, surpreendido com a quantidade de pessoas que disse jogar para ganhar dinheiro, quando essa probabilidade é, na prática, baixa — se assim não fosse, não dava receitas tão avultadas à Santa Casa. Segundo o estudo, 42% das pessoas que jogam semanalmente e 83% dos que o fazem diariamente declaram jogar à raspadinha para ganhar dinheiro.
“Há um problema sério que afeta 120 mil pessoas”, que “carece de ser resolvido“, entende. Assis e os coordenadores do estudo — Pedro Morgado (psiquiatra) e Luís Aguiar-Conraria (economista) — sublinham que não são a favor de “nenhuma solução proibitiva porque sabemos de antemão, até por outro tipo de dependências, que não é esse o caminho mais adequado para resolver o assunto” (admitindo que se essa proibição acontecesse, os apostadores passariam para a clandestinidade). Mas o socialista frisa que quem tem de tomar decisões é o Governo — e acredita que é isso que será feito. “O que nós não queremos é que os estudos fiquem na gaveta“, pede.
“Da parte do Governo, da Santa Casa, da parte da sociedade portuguesa, julgo que depois de um estudo desta natureza, haverá certamente consequências, isto é, do ponto de vista de divulgação.” O presidente do CES e ex-deputado do PS dá uma ideia: em Portugal não é proibido fumar, mas nas embalagens de tabaco é colocada informação sobre as consequências dessa prática. “Isso ajuda a resolver o problema? Do meu ponto de vista ajuda”, acredita, porque ajuda a informar as pessoas. Além disso, pede mais ações que ajudem a prevenir a dependência e que nas escolas sejam mais discutidos estes temas.
Mas muita da ação partirá das entidades envolvidas. “As entidades que promovem este tipo de jogos têm de ter consciência do que está em causa“, diz Assis, elogiando o fim da Lotaria do Património, que foi lançada para financiar o Fundo de Salvaguarda do Património Cultura, mas extinta, o que, para o socialista, mostra que o Governo percebeu o problema. A bola está, agora, também do lado do Executivo. Estudos como este, acredita, ajudam à tomada de decisão.
“Parece-me evidente que algumas coisas têm de ser feitas. Primeiro, tomada de consciência do problema, a forma como é publicitado e apresentado. Tem de haver cuidado. É preciso que as pessoas tenham o mínimo de noção quando estão a jogar. Há aqui uma expectativa [ganhar dinheiro] que está condenada a ser gorada”, declara.
“Julgo que depois disto haverá certamente medidas, que é mais informação junto das pessoas, mais preocupação em controlar”, acrescenta. O estudo foi feito por uma equipa multidisciplinar da Universidade do Minho para o Conselho Económico Social (CES).
“Não há uma agenda obscura. Quem inventou a raspadinha não há-de tê-lo feito com ideia de extorquir dinheiro”
Francisco Assis rejeita que haja uma “agenda obscura” que queira perpetuar a dependência para aumentar receitas. “Não há uma agenda obscura. As coisas às vezes evoluem por si próprias, temos é de as identificar. Quem inventou a raspadinha não há-de tê-lo feito com ideia de extorquir dinheiro aos mais carenciados. O que é facto é que isso aconteceu”, sublinha. Se não for pelo Governo, “a própria sociedade vai exigir soluções”.
Pedro Morgado, um dos coordenadores do estudo, diz que este não é um problema específico do país, mas pede “medidas mais contundentes para proteger” os mais vulneráveis. Também não acredita que haja uma “agenda escondida” e uma “vontade de perpetuar” um problema.
Para os investigadores ficou clara uma suspeita: este jogo funciona como um imposto regressivo, “em que classes com rendimentos mais baixos estão a financiar a raspadinha, portanto, estão a financiar quer as receitas públicas — porque parte das receitas da Santa Casa são entregues ao Estado —, estão a financiar o OE e estão a financiar despesas sociais”, resume Luís Aguiar-Conraria.
O estudo “Quem paga a Raspadinha?”, apresentado esta terça-feira e a que o Observador teve acesso, conclui que mais de metade do universo dos que apostam neste jogo — que é a principal fonte de receita da Santa Casa — recebe menos de 1.000 euros de salário por mês. Na verdade, quanto mais baixo o rendimento, maior a probabilidade de jogar neste jogo: a probabilidade em quem ganha até 400 euros é 50% mais alta do que para quem ganha 1.500 euros.
A primeira fase do estudo coordenado pelos investigadores Pedro Morgado (psiquiatra) e Luís Aguiar-Conraria (economista) procurou também saber a dimensão do universo dos apostadores. Os resultados revelam que mais de 400 mil pessoas jogam todas as semanas na lotaria instantânea e, dessas, 60 mil fazem-no todos os dias. O jogador da raspadinha tende a ser mais velho, ter baixas qualificações — e estar nas profissões não qualificadas do setor do comércio e serviços — e é mais do sexo feminino.
A forma como o jogo domina a vida dos apostadores varia muito. A investigação conclui que os problemas com raspadinha podem afetar cerca de 100.000 adultos, sendo que, destes, 30.000 pessoas apresentam sinais de perturbação de jogo patológico.
Esta foi apenas a primeira fase do estudo. Haverá, ainda, uma segunda fase para apurar a correlação entre o consumo em excesso de álcool e tabaco e a frequência do jogo. E a terceira fase será mais médica, incidindo sobre pessoas a quem foi diagnosticada uma prática de jogo patológica associada a uma adição muito forte.
O também economista da Universidade do Minho João Cerejeira frisou, aos jornalistas, que ainda não há uma análise profunda sobre a causalidade da preponderância da raspadinha e que não se pode ainda concluir que, se as pensões subissem para o dobro, o consumo diminua. A investigação vai, agora, focar-se nas causas da dependência.
Raspadinha tem características que “não permitem a ação clínica”. Cartão do jogador é solução?
O próprio desenho da raspadinha contribui para o acentuar do problema. O psiquiatra Pedro Morgado identifica várias características: tem uma “enorme facilidade de acesso”, está “disponível em praticamente todas as esquinas”, tem um custo baixo — “as pessoas que acham que estão em investir numa forma de resolver problemas pensam que o fazem com um investimento baixo” —, é “muito simples”.
Além disso, aponta que apesar de a publicidade à raspadinha não ser permitida, é feita na mesma de forma indireta. “É altamente publicitada na comunicação social”, diz, referindo os casos mediáticos de pessoas que ganharam avultadas quantias por terem apostado um euro.
A raspadinha tem, também, outra “característica que não permite a ação clínica“. Desde logo, porque não permite que as pessoas se autoexcluam do jogo, como acontece, por exemplo, com os casinos, em que o jogador pode pedir para lhe ser impedida a entrada.
Raspadinhas. CES promove estudo a um “imposto regressivo” onde há “responsabilidades públicas”
“Isso não é possível com a raspadinha“, uma vez que “não consigo trabalhar com um paciente para ele se autoexcluir livremente“, afirma Pedro Morgado. Por isso, defende que “o debate tem de fazer-se nas formas como a sociedade pode permitir a estas pessoas uma forma mais eficaz de se tratarem”.
O cartão de jogador seria uma solução? Os investigadores não quiseram comprometer-se, embora essa tenha sido uma opção levantada por Luís Aguiar-Conraria, em declarações ao Observador. Esta terça-feira, em resposta aos jornalistas, o economista questionou se se pode falar em liberdade individual quando um quarto dos jogadores apresentam risco de jogo problemático. “As pessoas são livres?”
Francisco Assis também não disse se concorda ou não com o cartão de jogador — as decisões cabem ao Governo, sublinhou, e o objetivo do estudo foi fornecer dados para uma tomada de decisão informada. “Uma boa decisão pressupõe um bom debate e um bom debate pressupõe o máximo de informação possível”.
Governo vai analisar. Santa Casa admite “outras formas de poder regular” o jogo
Confrontada com o estudo, a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, referiu que o Governo vai analisar os resultados antes de tomar medidas. “Precisamos de ter a avaliação do estudo para, em função disso, implementar as medidas. Mas, reitero, é importantíssimo ter o estudo para agirmos”, sublinhou a governante, citada pela Lusa, esta terça-feira após a reunião que manteve com a CIP.
Também a Santa Casa vai analisar o estudo e, com base nele, admite procurar novas formas de regular o jogo. “Esperamos que o estudo possa contribuir para podermos analisar e enquadrar outras formas de poder regular o jogo“, afirmou a provedora da Santa Casa, Ana Jorge, em declarações transmitidas pela RTP3.
Sem se comprometer com nenhuma medida específica — Ana Jorge diz que ainda não leu as conclusões — a provedora assume disponibilidade para poder vir a apertar o controlo, à semelhança do que acontece noutros jogos, como o online, em que o jogador pode ficar impedido de apostar a partir de um certo patamar.
Mas, no caso da raspadinha, em que o jogo é feito no exterior, uma solução como essa “torna-se mais complexa”. Além de que, na raspadinha, os apostadores “jogam para ter dinheiro imediato”, o que pode ser “uma das razões” para ser mais viciante. “Têm de ser estudadas formas de como podemos controlar isso“, defende.
Para a provedora, outra preocupação é encontrar formas de ajudar quem tem dependência do jogo. Ana Jorge diz que esse tipo de dependência deve ser enquadrada no “global das dependências”.
(Notícia atualizada às 17h52 com declarações da ministra Ana Mendes Godinho)