Uma missão de sumo relevo. Delicada, em contra relógio, e com todos os olhos do público em cima. “O cabeleireiro pessoal do capitão da Inglaterra, David Beckham, chega ao Japão amanhã para garantir que o inspirador médio tenha o melhor aspeto possível no jogo crucial dos quartos de final desta sexta-feira.” Não. Não se trata de uma legenda de um meme partilhado no X (ex-Twitter), ou de uma partida dos Dia das Mentiras. A 18 de junho de 2002, uma época em que o visual do futebolista era tão relevante quanto um golo de antologia ou uma comprometedora lesão, o The Guardian dedica todo um artigo à deslocação de Aidan Phelan, que 22 anos depois, não esquece o telefonema que lhe mudou a vida e catapultou para o estrelato.

Na semana em que a minissérie sobre o antigo jogador se estreou na Netflix, recorda o momento em que Victoria Beckham lhe ligou com um pedido muito especial. Grávida de sete meses, e a seguir o campeonato do Mundo à distância, pela televisão, a então Spice Girl pediu ao cabeleireiro que voasse para o Japão a fim de ressuscitar o mítico penteado do marido, que saíra desalinhado do embate prévio entre a armada inglesa e os dinamarqueses (com os primeiros a levarem melhor por 3-0). Uma forte chuva no final da primeira parte comprometeu o penteado espetado — na segunda parte, e depois da visita ao balneário, o cabelo do jogador recuperou vitalidade. “A transformação causou grande alegria entre os telespectadores japoneses, que especularam se Beckham tinha acabado de secar o cabelo com toalha ou se tinha recorrido a um secador de cabelo durante a palestra de [selecionador] Sven [Goren Göran Eriksson]”, especulava o Evening Standard a partir do Reino Unido.

“Phelan voará para o aeroporto de Narita, em Tóquio, amanhã e será levado diretamente para o campo de treinos da Inglaterra, na ilha de Awaji, a cerca de três horas de distância, onde tentará retificar o moicano de Beckham”, lê-se no mesmo diário. “Parece que [o penteado] precisa de um pouco de acabamento. Voar para o Japão certamente será a minha visita ao domicílio mais distante”, confessaria o cabeleireiro.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

GettyImages-52884992

Um festejo de pouca dura. O Brasil levaria a melhor sobre Inglaterra nesses quartos de final no Japão

Qual operação sigilosa, o homem que então dirigia o salão Strangeways, em Leigh-On-Sea, no Essex, não adiantaria grandes detalhes, alimentando a curiosidade sobre o penteado com que David pisaria o relvado nesse embate previsto entre Inglaterra e o Brasil, que marcaria a despedida da prova dos primeiros. (1-2)  “Não sei exatamente o que vou fazer no Japão. Vamos sentar-nos e discutir.”

Influenciador antes da ascensão das redes, o cabelo de Beckam sempre motivou tanto interesse quanto os seus poderosos livres. Primeiro, pela longa e típica franja dos 90. No final dessa década, em 1997, passou à a lucrativa colaboração com a marca de produtos de hairstyling Brylcreem. Mais tarde, o radical corte, já em 2000, que o deixou de cabeça rapada, depois por uma espécie de mini moicano (que durou pouco e terminou com a intervenção da máquina zero de novo) e então com uma crista mais saliente. Em 2004, já com o emblema do Real Madrid ao peito, destaca-se com o rabo de cavalo. Um ano depois, as nuances louras e o cabelo mais comprido. Nem vamos discriminar a alternância recorrente entre tons de louro, mais escuro ou platinado. Ou a revisitação do estilo moicano em 2009. Ou se a apresentação é mais formal ou casual. Volumoso, com comprimento que pede uma fita ou sleek e sofisticado? A revista People revista todos estes looks, que acompanham a evolução de estilo do antigo futebolista e até já narraram toda uma história oral. 

Os cabelos, as roupas e as poses. O estilo dos Beckham ao longo dos anos e de 40 imagens

“Até à chegada de Beckham, os jogadores de futebol eram conhecidos por terem uma imagem previsível e ele mudou toda a nossa indústria. Popularizou as tatuagens, levou os homens a comprarem produtos para o cabelo. Mudou a moda”, disse Phelan ao TalkSport. A febre da crista provocou um autêntico surto em solo nipónico, onde os seguidores mais fervorosos do médio não se contentavam apenas em exibir uma camisola com o seu nome e número. Muitos moldaram o seu cabelo à imagem e semelhança de David, que em 2002 protagonizaria uma lendária capa da GQ, edição especial de colecionador, com unhas pintadas, chapéu e um recheio povoado de fotos arrojadas com o cunho de David Chapelle. “O meu estilo? É de outro planeta”, sentenciaria a estrela.

Mas nem todos aprovaram estas mexidas. Que o diga Sir Alex Ferguson. Beckham começou por ensaiar o penteado moicano ainda no ano 2000, antes do confronto  a contar para a Charity Shield (atual Community Shield, (que todos os anos leva até Wembley o vencedor da liga inglesa e o da taça) entre o Manchester United e Chelsea. O Daily Mail revelava então que o jogador assistira ao filme Taxi Driver uns dias antes e que pedira ao cabeleireiro Tyler Johnston, para repetir o penteado. Ferguson, à época  treinador dos red devils, deixou claro não ser fã do look e proibiu David de se apresentar assim em campo.

“Eu tinha ido treinar no dia anterior com um gorro, treinei com gorro, voltei, andei no hotel, andei sempre com o gorro, jantei, gorro posto, autocarro a caminho do estádio — gorro.”, revelou Beckham, que tentou esconder o cabelo ao máximo, receoso da reação de Alex. “Então, quando me estava a preparar para ir jogar, tirei o gorro e disse “vai cortar isso”. Ri-me e e ele respondeu “não, estou a falar a sério. Vai cortar’. Tive que encontrar uma máquina e rapar a cabeça no estádio de Wembley. O treinador é quem manda”.

GettyImages-174046851

Foi de cabeça rapada que David entrou em campo para defrontar o Chelsea

A intervenção do escocês de pouco serviu. O United perdeu o desafio por 2 a 0. Quanto ao famigerado penteado de Beckham, só reapareceria cerca de dois anos depois, quando o médio se juntou à seleção. Sobre o adeus ao seu cabelo louro, foi mais um acontecimento mediático de largo impacto. “Quando David Beckham rapou a cabeça, honestamente pensei que um membro da minha família tinha morrido. Porque meu telefone não parou de tocar”, lembra po paparazzo de Manchester James Clarke na minissérie.

O rebelde das tesouras que fez um corte por 30 mil libras

Natural de Birmingham, chamam-lhe o bad boy dos cabeleireiros britânicos, um Marco Pierre White num salão de beleza, ou mesmo um Ronnie O’Sullivan com um par de tesouras na mão. Começou por baixo, chegou ao topo, e de novo entrou numa espiral descendente. Chegado aos 51, Aidee Phelan, diretor criativo da galeria Quantus, em Londres, continua sem saber ler nem escrever. Saiu da escola cedo, viveu vários anos à margem, foi pintor e decorador, perdeu-se para os excessos, e encontrou redenção no final de 90, quando Lee Stafford o convidou para vir trabalhar para ele. Dois anos depois, arrebataria o prémio de Cabeleireiro do Ano. De novo numa montanha-russa, passou pelo fim de um casamento atribulado, teve um colapso nervoso, perdeu o cabelo. Em 2002, quando o poço parecia destino de sentido único, conheceu um amigo próximo dos Beckham numa festa. Pouco depois, Victoria requisitaria os seus serviços. “Ela disse ‘adoramos o que você faz, sou uma grande fã, e o David está à procura de um novo cabeleireiro’. Até então eu nunca tinha conhecido uma celebridade e no minuto seguinte estou a trabalhar com o homem mais famoso do planeta.”, disse a um jornal da sua terra natal. Desde que criou o estilo Beckham, foi inundado de homens ansiosos por uma mudança, para um registo mais urbano, de rua. “Recebo pedreiros, construtores,.. todos procuram essencialmente a mesma coisa.”, descrevia ao Standard.

“Beckham”: o futebolista, o egoísta e o apicultor

O começo do novo milénio foi um autêntico furacão para Aidan. Ao The Times, o cabeleireiro recorda como ganhava um milhão de libras por ano, entre 2004 e 2015. “Foi obsceno”. Boa parte do retorno chegava mesmo sem mexer nas tesouras, apenas por presenças em discotecas e parcerias publicitárias. O corte mais caro alguma vez feito aconteceu com um príncipe no Dubai. Recebeu 30 mil libras e um Rolex. “Foi muito mais do que recebi pelo corte de cabelo mais famoso que já fiz – o moicano de David Beckham pouco antes do Mundial de 2002. O acordo que eu tinha com ele era que sempre que lhe cortava o cabelo era numa sessão para acompanhar uma entrevista para uma revista como Marie Claire ou GQ ou ID, então o cliente – a Adidas, por exemplo – pegava a conta, Beckham pessoalmente nunca me pagou.”

Phelan entrou na história apenas como um dos magos do cabelo de David. Em bom rigor, o astro nunca se ficou apenas por um nome. Entre 1999 e 2006, Ben Cooke foi outros dos cabeleireiros a cargo de David e Victoria, enquanto Alain Pichon, segundo a GQ, terá cuidado de Beckham na fase em que usava o cabelo mais comprido.

“A primeira vez que conheci [o David], estávamos no Top of the Pops quando as Spice Girls estavam a cantar o ‘Goodbye’. Eu estava com as miúdas, e a Victoria disse: ‘Podes arranjar o cabelo do meu namorado?’ porque ele tinha um boné, aquele cabelo de boné”, disse Cooke, que começou por mostrar-se relutante. “Não estava ali para arranjar os cabelos dos namorados delas”. Mas depois pensou que tinha uns minutos para cuidar daquele rapaz, que haveria de dar nas vistas e distribuir milhares de autógrafos.

Filho de uma cabeleireira, e pai de quatro filhos, que vão muitas vezes emulando alguns dos seus penteados mais icónicos dos últimos anos, David Beckam lamenta apenas a fase em que apostou na trancinhas, look que lhe valeu a alcunha de The Mandela, depois de ter visitado a África do Sul para conhecer o antigo presidente.

O próprio Beckham apostou no segmento de beleza e cuidados masculinos. Em 2018, lançou a sua House 99.

“Qualquer corte de cabelo que ele fizesse naquela época teria se tornado o que todos queriam. Ele provavelmente poderia ter tornado o Perry Como enorme em 2002.”, sentenciava em 2015 o ghostwriter de David Beckham.