Os meninos não brincam com bonecas. As meninas detestam carros. As bailarinas são todas magras. Os cantores de ópera têm todos excesso de peso. Os surfistas são todos louros e maioritariamente rapazes naturais da Austrália ou dos Estados Unidos da América. Enviesamentos inconscientes, que reforçam modelos de preconceito e exclusão, muitas vezes desde idades muito jovens. E a verdade é que uma criança que cresça sem se sentir representada numa atividade, dificilmente vai acreditar ser possível realizar essa atividade.
Quando se fala de surf, as mulheres negras e o continente africano não aparecem na conversa. Mas por que é que as raparigas de São Tomé não poderiam surfar as ondas do seu país e encontrar aí um porto seguro de liberdade e igualdade?
Foi esta premissa que levou ao projeto “Surfing Through the Odds”, que dá finalmente protagonismo a uma organização sediada em São Tomé e Príncipe que desenvolve o seu trabalho em torno do surf enquanto ferramenta para o empoderamento feminino – a SOMA – Surfers Proud of the African Women – e que foi fundada por Francisca Sequeira em 2020. “A SOMA é um programa de terapia através do surf, dedicada a combater a desigualdade de género. É um programa para raparigas entre os 6 e os 18 anos. Todos os dias, a seguir à escola, estas raparigas vêm para a SOMA. Têm aulas de surf, apoio académico”, explica a fundadora da SOMA.
Contrariar as estatísticas
São Tomé e Príncipe é o segundo país mais pequeno do continente africano e estima-se que 67% da população viva abaixo do limiar da pobreza. Segundo a UNICEF, apenas 34% das raparigas chegam ao Ensino Secundário. No Índice de Desigualdade de Género da UNPD, São Tomé ocupa o 138º lugar, num total de 191 países; e a taxa de prevalência de gravidez na adolescência é uma das maiores de toda a África Subsaariana: 27%.
“Em São Tomé, as raparigas são educadas para não procurar ajuda e não partilhar as suas emoções. Por causa das normas sociais e tradições culturais do país, estas raparigas não pedem ajudam quando sofrem alguma espécie de abuso ou agressão. Na SOMA temos mesas redondas para discutir o papel da mulher na sociedade e para dar educação sexual. Ao darmos estas ferramentas, começamos a ver estas raparigas a ter ambições e a fazer planos de vida”, conta Francisca Sequeira. E o ponto de partida para tudo é o surf e a noção de que, como o surf não é inacessível para nenhuma destas raparigas, nenhuma outra coisa deve ser.
Dar voz a quem não a tinha
Quando a SOMA chegou ao conhecimento da Betclic e da sua agência, a Coming Soon, não restaram dúvidas de que o trabalho da organização era uma perfeita ilustração do mote da marca – Defy the Odds -, já que contrariava em tudo aquilo que era expectável daquelas jovens e da sua realidade. “O nosso objetivo foi ajudar a SOMA. Eles contribuem incrivelmente para a comunidade de São Tomé e quisemos dar-lhes as ferramentas para fazerem ainda melhor e poderem apoiar ainda mais raparigas, continuando a fazer frente ao que pareceria o destino certo e inalterável delas. Ao mesmo tempo, queremos trazer para a ribalta desportistas que normalmente não fazem as primeiras páginas dos jornais – sabemos que o futebol tem a atenção do mundo, mas temos de falar de outros desportos e temos de contribuir para a representatividade de várias modalidades e atletas. No caso do surf, é importante chamar a atenção para raparigas negras que surfam e gerar uma onda de mudança que possam levar outras marcas a apoiá-las”, conta Ricardo Malaquias, Marketing Project Manager na Betclic.
O que nem a Betclic nem a Coming Soon faziam ideia foi que não conseguiriam encontrar, em nenhum banco de imagens, fotografias ou vídeos que lhes permitissem realizar o trabalho a que se propunham e representassem aquilo que era a SOMA e o seu trabalho junto das raparigas de São Tomé. Pura e simplesmente não existia imagens de arquivo de raparigas africanas a surfar. Como se estas raparigas não existissem.
É nesta altura que o desafio é lançado à Shutterstock, que se predispõe a rumar a Santana, capital do distrito de Cantagalo, em São Tomé and Príncipe, para conhecer estas raparigas e produzir esses materiais inexistentes. Depois de semanas de trabalho, um total de 109 fotografias e 30 vídeos passaram a estar disponíveis para compra na plataforma Shutterstock, e o valor obtido pela venda de qualquer uma destas peças reverterá para a SOMA.
Além disto, o documentário “Surfing Through the Odds | The SOMA Surf Story” está já disponível no Youtube e poderá ser visto, em Novembro, no Surf at Lisbon Film Fest, seguindo depois para Londres, Estados Unidos da América e Austrália. Segundo Ricardo Malaquias, “o grande objetivo é ajudar esta comunidade e este país, de forma a que as jovens nascidas e criadas em São Tomé possam ter melhores condições de vida”. Que possam surfar as ondas dos seus sonhos. Sejam eles quais forem.