A imobiliária espanhola Merlin Properties recebeu propostas para reativar o cinema Monumental, em Lisboa, mas está a considerar ceder, a custo zero, o edifício para um centro tecnológico de ensino, o Tumo Lisboa. Só que para isso precisa do aval do ministro da Cultura, que ainda não decidiu sobre a desafetação do espaço à atividade cinematográfica.
“Houve propostas. O argumento de que não havia interesse [no cinema] caiu”, diz ao Observador o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, à margem da inauguração do MAC/CCB, esta quinta-feira. Em julho, o Observador noticiou que a Merlin Propreties, atual proprietária do edifício Monumental, em Lisboa, não via “viabilidade de reabrir o cinema” que ali continua a existir antes de encerrar em 2019. Em agosto, o Ministério da Cultura abordou várias entidades do setor cinematográfico sobre a possibilidade de encontrar soluções para reabrir o cinema.
“Foi um tempo muito curto e houve propostas” para reativar o Cinema Monumental, refere o ministro ao Observador, confirmando que a Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC) já visitou o espaço. Para que o Monumental possa ter outro uso que não o de cinema é exigida uma autorização do ministro da Cultura, como estipulado pelo decreto-lei 23/2014. Sabe-se agora que esse pedido de desafetação do espaço à atividade cinematográfica terá sido pedido pela Merlin Properties já com um projeto em vista: o Tumo Lisboa.
É o que descreve Pedro Santa Clara, professor na Nova School of Business Economics (SBE), que abriu este ano o Tumo Coimbra e pretende abrir o mesmo projeto na capital. Trata-se de um centro de ensino gratuito para jovens apoiado em mecenato e que envolve, entre outros parceiros, o BPI, cuja sede em Lisboa está instalada no edifício do Monumental.
“Foi o BPI, que é parceiro do Tumo Coimbra, que se lembrou de que lá no sítio em que trabalham havia ali uma caverna esquecida, e que nos pôs em contacto com a Merlin”, conta ao Observador, por telefone. “Depois de muita conversa, aceitaram ceder-nos o espaço gratuitamente durante oito anos, para fazermos o Tumo Lisboa, sendo que essa cedência de espaço, obviamente, será a contribuição filantrópica deles para o projeto”, adianta.
Monumental: a história e o legado de um cinema “sem viabilidade”
Para Pedro Santa Clara, “a escolha aqui é, apesar de tudo, relativamente simples”. “O que é que gera mais valor para a sociedade? É ter mais uma sala de cinema com um grande ponto de interrogação na frente, porque não é óbvio que seja viável, ou ter ali uma escola que vai formar 1500 jovens por ano em áreas até muito relevantes para a cultura?”, questiona. O professor universitário de Finanças revela que foi através de Carlos Moedas que conheceu o projeto. “Há uns quatro anos, a primeira pessoa a falar-me do Tumo foi o Carlos Moedas, antes mesmo de ser Presidente da Câmara, como o projeto de educação mais extraordinário que tinha conhecido enquanto Comissário Europeu”, recorda. Pedro Santa Clara diz ter o apoio da Câmara Municipal de Lisboa na procura de um espaço há pelo menos dois anos (“já vimos muitos espaços da Câmara ou de outras entidades”, diz), mas que tem sido difícil encontrar um lugar com as características que pretende: “1500 m2, um espaço razoavelmente aberto, com um pé direito alto, e acima de tudo com muito boa acessibilidade”. Espera, tal como aconteceu em Coimbra, que “se o projeto avançar, a Câmara possa contribuir para o seu financiamento”.
Em setembro, o fundo proprietário do imóvel acedeu a visitas de interessados em “analisar a eventual operação de 4 salas de cinema”. Segundo um e-mail enviado pela empresa espanhola a que o Observador teve acesso, as visitas teriam de se realizar até ao dia 18 de setembro e a apresentação de propostas até dia 26 do mesmo mês. “A análise de propostas será feita até ao final do dia 4 de outubro”, lê-se no mesmo documento, enviado a 12 de setembro
O mesmo e-mail admitia que “mais do que uma entidade manifestou o mesmo interesse” de explorar as salas de cinema. “Com o intuito de poder analisar de forma coerente, transparente e o mais detalhada possível todas as propostas”, a Merlin Properties estipulou “regras comuns para a apresentação de propostas”. As propostas tinham, assim, de indicar, entre outras coisas, a duração do contrato de arrendamento, o valor da renda mensal, um “breve descritivo do conceito cinematográfico que se propõe exibir”, um esboço do projeto de arquitetura das obras, uma estimativa do custo ou ainda uma “estimativa do nº de bilhetes vendidos durante os 3 anos iniciais de operação dos cinemas”.
Fontes ouvidas pelo Observador contestam o que dizem ser um calendário demasiado curto para a apresentação de uma proposta com o nível de detalhe demandado. Pedro Borges, produtor e distribuidor da Midas Filmes, e responsável por devolver o Cinema Ideal à capital em 2014, indica que apelou à reavaliação do prazo, mas a resposta foi uma extensão “até ao final da semana”. “Não é sério”, descreve.
Mesmo perante o calendário apertado, houve quem apresentasse uma proposta para voltar a levar filmes ao Monumental. É o caso da Cinetoscópio, empresa de exibição criada em 2022 para reativar salas de cinema independente que gere a sala de cinema Fernando Lopes, também em Lisboa. “Confirmo que visitámos o espaço e que apresentámos uma proposta que consideramos sólida e economicamente interessante para a propriedade, mas até ao dia de hoje ainda não recebemos feedback”, adianta ao Observador Stefano Savio (Risi Film), um dos sócios da Cinetoscópio, além de Luís Urbano (Som e Fúria) e Luís Apolinário (Alambique).
“Temos um projeto cinematográfico interessante, ligado ao cinema de autor, mas mais aberto, conjugando outro tipo de eventos. Segue a programação que podia ter o [antigo] Monumental, entre o Nimas e a UCI [Cinemas]”, compara. À proposta, que inclui a reativação do Cine-Teatro, não obtiveram qualquer resposta oficial do ministério ou da Merlin Properties — que acusou apenas a recepção da proposta.
“O Monumental tem todas as condições para voltar a ser uma sala de cinema com um papel central na vida cultural de Lisboa. Seria um desperdício não aproveitar desta possibilidade. Seria uma pena uma sala como o Monumental ser destruída”, diz Stefano. “Nada contra o projeto da Tumo, o nosso ponto de vista é que o projeto é ótimo, mas pode perfeitamente realizar-se em qualquer outro sítio da cidade. Não precisa de destruir uma sala de cinema.”
“A sensação é que há um negócio já feito”
Na semana passada, Pedro Santa Clara fez uma publicação no Linkedin sob a forma de “apelo ao Ministro da Cultura”, impelindo à partilha do post e ao envio de um e-mail para o gabinete do Ministério. Esta semana, o apelo originou uma notícia no jornal Económico. Stefano Savio, da Cinetoscópio, é categórico: “Parece que estão a pressionar o ministro”. Além disso, “omitem que existem propostas para tornar a sala um cinema”. “Defendem-se com uma consulta. Foi uma consulta que foi feita através de que suporte? Parece que só queriam um documento que provasse que não era possível fazer ali uma sala de cinema.”
Na publicação na mesma rede social, Santa Clara refere a existência de um estudo da consultora CBRE sobre a viabilidade do Cinema Monumental. O professor universitário confirma que o estudo foi pedido pela empresa espanhola à consultora. O Observador dirigiu várias questões à Merlin Properties e pediu acesso ao dito estudo, mas, através da agência de comunicação em Portugal, a empresa limitou-se a dizer que”A Merlin Properties não tem mais nenhuma informação ou desenvolvimento a acrescentar sobre este tema, além do que já foi partilhado anteriormente.”
Entre cinema ou centro tecnológico, as opiniões dividem-se quanto ao futuro do cinema Monumental. Segundo o produtor e realizador Fernando Vendrell, da direcção da APCA – Associação de Produtores de Cinema e Audiovisual, a hipótese de o espaço no Saldanha dar lugar ao Tumo Lisboa “é o maior absurdo”. “É uma situação já resolvida e só mostra a ineficácia e a forma displicente com que a tutela está a trabalhar. Fez uma consulta, não revelou os lados da consulta e tomou uma decisão”, diz, sobre a auscultação ao setor feita pelo ministério até 31 de agosto e sobre a qual, à data de publicação deste artigo, nada se sabe. “A sensação é que há um negócio já feito”, lamenta. “Querem fazer uma escola de unicórnios no Monumental”. Várias fontes no seio cinematográfico ouvidas pelo Observador descrevem um sentimento de operação concertada. “Concertada, mas não é comigo. Não faço parte desse concerto”, diz Pedro Adão e Silva.