A IGAS (Inspeção-Geral das Atividades em Saúde) abriu um inquérito ao caso das gémeas luso-brasileiras que vieram a Portugal receber um medicamento de dois milhões de euros, para cada uma, e em que o Presidente da República é suspeito de ter interferido para facilitar o processo.
“Informamos que a IGAS abriu um processo de inspeção sobre o processo de prestação de cuidados de saúde às duas crianças para verificar se foram cumpridas todas as normas aplicáveis a este caso concreto”, adianta a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde numa resposta escrita à agência Lusa. Ainda esta segunda-feira, o Inspetor-Geral, António Carapeto, reúne-se com o Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, que integra os hospitais Santa Maria e Pulido Valente, “para que este órgão o informe sobre as medidas internas já adotadas e comunicar a ação inspetiva da IGAS”.
O caso foi noticiado pela estação de televisão na passada sexta-feira e remonta a 2020, altura em que duas gémeas luso-brasileiras vieram a Portugal receber o tratamento Zolgensma, no Hospital Santa Maria, depois de terem sido diagnosticadas com Atrofia Muscular Espinhal. Trata-se de um dos medicamentos mais caros do mundo e em causa está uma alegada interferência de Marcelo Rebelo de Sousa que terá permitido que as bebés tivessem acesso ao tratamento de quatro milhões de euros para as duas.
Marcelo Rebelo de Sousa, em declarações à TVI, assegura que não houve interferência e explica que “chegou o pedido” e que depois de se apurar que se tratava de uma “questão relevante mas complexa” foi decidido “mandar duas cartas, uma para o chefe de gabinete do primeiro-ministro e outra para o gabinete do Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas”. Nega a ideia de que houve cunhas e garante que se as houve não aconteceram por uma via que conheça: “Então alguém com muita influência passou por cima do Presidente da República, do primeiro-ministro, porque para chegar à ministra tinha de chegar ao primeiro-ministro… portanto a cunha deve ter surgido noutro plano… ou então não surgiu.”
Porém, e apesar de assegurar que não tem memória de ter falado com o filho que vive no Brasil, Nuno Rebelo de Sousa, sobre o caso (“Francamente não me lembro“), Marcelo Rebelo de Sousa enviou um e-mail a António Levy Gomes que o desmente: “No meio de milhentos pedidos e solicitações, falou-me o meu filho Nuno num caso específico de luso-brasileiras no Brasil. Disse-lhe logo de imediato que não havia privilégio nenhum para ninguém e por maioria de razão para filho de Presidente.”
Daniela Martins, mãe das gémeas, garante que nunca entrou em contacto com Marcelo Rebelo de Sousa e que não conhece Nuno Rebelo de Sousa pessoalmente, mas realça que conheceu a esposa (nora do Presidente da República) que também vive no Brasil.
Nas imagens reveladas pelo programa da TVI, Daniela Martins reconhece que nem tudo foi fácil no Hospital de Santa Maria, mas reconhece que usou os contactos que tinha: “Usámos os nossos contactos. Conheci a esposa do… a nora do Presidente, que conhecia o ministro da Saúde [na altura era a ministra Marta Temido], que mandou um e-mail para o hospital. Começaram a receber ordens superiores.”
O caso é de 2020 e, além de ter gerado um conflito entre os médicos do serviço de Neuropediatria e o Conselho de Administração, deixou questões por responder: Ana Paula Martins, agora presidente do Centro Hospitalar Lisboa-Norte, assegura que não está nos registos a carta que foi enviada pelos médicos na altura e o dossiê com registo de inscrição das gémeas desapareceu.
A mãe das crianças é lusodescendente e, depois de contactar um advogado, percebeu que as gémeas teriam todos os direitos no Serviço Nacional de Saúde (SNS). As crianças chegaram ao Santa Maria com uma consulta marcada e quando ainda não tinham número de utente — até porque o consulado de São Paulo só recebeu o pedido de nacionalidade uma semana depois do tratamento. E receberam mesmo o medicamento de toma única, ainda que vários médicos tenham estado contra.