Há 19 anos, o Presidente da República dissolveu o Parlamento por estar farto “do Santana como primeiro-ministro”, como confessou mais tarde na sua biografia. Jorge Sampaio anunciou a dissolução a 30 de novembro de 2004, mas só assinou o decreto 22 dias depois que produzia efeitos formais, com o objetivo de salvaguardar o Orçamento do Estado para 2005. Defendeu, assim, a preferência por um “orçamento aprovado que assegurasse, desde o início do ano, o normal funcionamento da Administração Pública”, preocupado em assegurar os aumentos previstos para os funcionários públicos. Marcelo Rebelo de Sousa tem agora como referência a posição de Sampaio e está inclinado a repetir a fórmula para acautelar o OE2024 e o PRR.

“Conduzi (…) as coisas de modo a que Assembleia da República, se assim o quisesse, votasse o Orçamento do Estado para 2005“, informava Sampaio na comunicação formal que fez ao país, a 10 de dezembro de 2004, depois de ouvir os partidos políticos com representação parlamentar e o Conselho de Estado — etapas que estão a ser cumpridas pelo atual Presidente após a demissão de António Costa na terça-feira. Na mesma ocasião, a partir do Palácio de Belém, Jorge Sampaio anunciou que iria marcar eleições para o dia 20 de fevereiro. Marcelo tem assim precedentes que ajudam a justificar o adiamento do processo que conduziu à dissolução do Parlamento para salvar o orçamento. Pelo que se sabe até ao momento, está a seguir o guião do antecessor à risca.

Já o cenário político que levou o antigo Presidente da República a pedir a dissolução do Parlamento em 2004 é diferente ao da crise governativa em curso, que foi consequência de processos crime que visam membros do atual Executivo, incluindo o primeiro-ministro. A 17 de março de 2002, Durão Barroso venceu as eleições, mas só esteve dois anos em São Bento, não tendo resistido ao chamamento da liderança à Comissão Europeia. Sampaio tinha em mãos a decisão de lançar a “bomba atómica”, ou aceitar o sucessor escolhido por Barroso: Pedro Santana Lopes. Optou pela última e não correu bem.

Memórias de um Governo curto onde aconteceu tudo, na primeira pessoa

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O social-democrata segurou o Governo de julho de 2004 a novembro do mesmo ano, quatro meses e muitos incidentes depois, o copo de Sampaio transbordou perante uma série de episódios que ensombravam a credibilidade do Governo. A cerimónia da tomada de posse de Santana Lopes foi só o início. O primeiro-ministro a ser empossado sentiu-se mal com o calor no Palácio da Ajuda e mostrou-se desorientado enquanto discursava. Na mesma ocasião, Teresa Caeiro acabou por tomar posse, para sua própria surpresa, como secretária de Estado das Artes e dos Espectáculos, poucas horas depois de ter sido anunciada por Paulo Portas na pasta da Defesa. Seguiu-se um dos arranques do ano escolar mais atribulados de sempre, com atrasos na colocação de docentes e ainda sucessivas discordâncias entre ministros do Governo de Santana.

“Face a uma situação cuja continuação seria cada vez mais grave para Portugal, entendi, em consciência, que só a dissolução parlamentar representava uma saída”, defendeu o Presidente da República, apoiando-se na reação favorável do país à decisão que tinha anunciado no dia 30 de novembro de 2004, através de um comunicado. Apesar de referir que pretendeu sempre assegurar a aprovação do Orçamento do Estado para 2005, Sampaio assegurou que não tinha ficado “surdo” perante as reclamações de quem entendia que o plano económico não respondia “satisfatoriamente às exigências de efetiva consolidação orçamental”, bem como às condições para assegurar compromissos nacionais e internacionais. Reclamações idênticas foram feitas quase duas décadas depois, esta terça-feira, no dia da queda de António Costa.

O atual líder do PSD Luís Montenegro não se comprometeu em esperar por uma eventual aprovação do Orçamento do Estado, exigindo eleições antecipadas rapidamente. “Tenho o compromisso com o país e com os portugueses. Estamos empenhados em deixar fluir o exercício de competências que cabe a cada órgão de soberania, em especial do Presidente da República. Vamos avaliar com ele”, notou o social-democrata. Há opiniões contrárias. A líder do PAN, Inês Sousa Real, após a reunião com o Presidente da República, reiterou a necessidade de salvar o OE para 2024. “Em primeiro lugar que se salvaguarde o Orçamento do Estado”, sublinhou a líder do PAN, assegurando que o partido está “preparado para qualquer das circunstâncias”.

Em 2004, Jorge Sampaio lembrava a vantagem que um novo ato legislativo trazia — o horizonte de quatro anos do Governo que resultasse da ida às urnas dos portugueses. Após ter contribuído para a estabilidade económica ao assegurar a aplicação das medidas orçamentais previstas para 2005, o Presidente tinha esperança que a amplitude temporal permitisse dar resposta ao “grave problema orçamental” que Portugal tinha então para resolver. Voltando ao presente, tudo indica que o Presidente protele a formalização da demissão até 29 de novembro, evitando que o Orçamento do Estado para 2024 caia e que os portugueses arranquem o novo ano a duodécimos.