“Não estou aqui no papel de mais do que um economista, acreditem”. Poderia ser difícil para a audiência que ouvia Mário Centeno, que falava num almoço promovido pelo International Club em pleno turbilhão política, acreditar que o homem que terá chegado a ser apresentado a Marcelo Rebelo de Sousa como hipótese para substituir António Costa não tinha nada para dizer sobre política. E não teve — sobre a crise atual –, mas deixou as suas ideias claras — incluindo sobre temas que geram divisões na esquerda e no PS.
O dia era “especial”, porque calhou, por azar, a meio de uma crise política com origem inesperada e resultados incertos, como referiu logo de início Luís Castro e Almeida, presidente do BBVA em Portugal, notando que os governadores dos bancos centrais, como é o caso de Centeno, estão habituados a tempos especiais e “de crise”. Centeno sorriu, acenou, e cumpriu o que diria depois aos jornalistas: não falaria naquele palco sobre atualidade política.
Falou, ainda assim, da atualidade económica, deixando avisos que chocam de frente com algumas das propostas da esquerda — e também da esquerda do PS. Lembrando que a banca está num “bom momento do ciclo”, Centeno logo alertou que os ciclos, por natureza, terminam: “O ciclo pode mudar, vai mudar, não sabemos quando mas temos de estar preparados”.
Por isso mesmo, sublinhou, o setor da banca deve aproveitar o atual momento para se “preparar” e criar “almofadas” que lhe permitam resistir às próximas crises. “O maior erro histórico da economia portuguesa é que nunca estivemos preparados para a próxima crise”.
Uma ideia que pode entrar em conflito não só com as que os partidos mais à esquerda defendem, mas também com a ala esquerda do próprio PS. “Era justo que os lucros dos bancos portugueses devessem refletir-se na travagem e na redução das prestações pagas pelas famílias, através da taxação e negociação com os bancos”, defendia Pedro Nuno Santos no seu espaço de comentário na SIC — uma ideia com que Centeno dificilmente concordaria.
Recebendo, de resto, elogios pelo seu papel enquanto ministro das Finanças — que deixou como legado a marca das contas certas, que permitiu ao PS afastar o fantasma do despesismo e apostar numa narrativa nova ao nível da gestão das contas públicas –, Centeno fez questão de fazer o elogio da política económica portuguesa, incluindo no seu tempo.
“Em 2019, quando chegámos ao primeiro excedente, o país estava preparado para enfrentar uma dificuldade. E enfrentámos o maior desafio em muitas décadas e portámo-nos otimamente, estávamos preparados e fomos ótimos”, atirou, recordando os tempos da pandemia. Depois, sentenciou: “Foi a primeira vez na história moderna que, no contexto de uma crise, Portugal reduziu a sua dívida”. Se nas crises anteriores havia um ponto “comum” — “saíamos com um défice maior”, desta vez isso não aconteceu e Portugal manteve a estratégia de pulso firme no controlo das contas públicas.
Esses louros também acabariam por ser frisados por Centeno quando falou do seu próprio percurso e da eleição para presidir ao Eurogrupo: “Levei isso como um sinal de que Portugal, depois dos tempos muito difíceis que passámos, foi nesse momento recompensado com essa posição”. Ou seja, ver a presidência do Eurogrupo ser atribuída a uma pessoa que vinha de um país que “há uns anos teve o tipo de dificuldades que teve” foi uma grande “conquista” para Portugal como um todo.
A experiência foi, de resto, comentada por Centeno, que também tinha referido brevemente os anos que passou na terra natal de Olhão e a passagem por Harvard. Depois, chegou aos tempos do Ecofin, explicando que obrigava os ministros europeus a terem “noites muito longas” de discussão (“era comum que durassem das duas da tarde às oito da manhã”) que tentava compensar oferecendo aos colegas, no Natal, livros de autores portugueses (o primeiro escolhido foi José Saramago, depois Gonçalo M. Tavares).
Quanto à atual função como governador do Banco de Portugal, explicou que é bem diferente: os governadores são “muito mais organizados” do que os políticos — uma reunião do Eurogrupo é um “mercado”, uma reunião de governadores é mais organizada e menos folclórica. Pareceu, de resto, sugerir o mesmo ao defender que os políticos “magnificam a realidade”, e os seus problemas, para defender a suas posições e definir diferenças de posicionamento — mesmo que por vezes essas diferenças mal se consigam ouvir pelo meio dos “discursos muito longos” que fazem.
Mesmo assim, e tendo começado como economista, o próprio Centeno tem uma experiência política de peso — e tornou-se de tal forma político que chega agora a ser equacionado pelo PS para substituir Costa na liderança do Governo. Mas não era disso que estava ali para falar — e cumpriu o voto de silêncio, abandonando a sala sem prestar declarações aos jornalistas.