A sabedoria popular diz que, ao longo da vida, é possível mudar de casa, de carro, de religião e até de mulher ou marido — mas nunca de clube. O clube, as cores que se defendem desde criança, os valores que se apoiam de forma algo irracional, o universo a que se pertence, é absolutamente vinculativo e impossível de abandonar. Para Javier Milei, eleito presidente da Argentina no passado domingo, as coisas não são assim tão simples.

Aos 53 anos, nascido em Buenos Aires e criado num país que entre as décadas de 70 e 80 organizou um Campeonato do Mundo e ganhou outro, Javier Milei é um óbvio adepto de futebol. Cresceu como fervoroso apoiante do Boca Juniors, um dos principais clubes da capital da Argentina, e foi sócio durante praticamente toda a vida. Assistia aos jogos na Bombonera, rodeado dos milhares de outros xeneize que todos os fins de semana enchem o mítico estádio, e respirava amarelo e azul. Até ao dia em que colocou aquilo em que acredita à frente do futebol.

Em 2013, seis anos depois de ter voltado ao Boca Juniors após ter estado no Barcelona e no Villarreal, Juan Román Riquelme disse que não iria voltar a vestir a camisola do clube e teve praticamente tudo acertado para se mudar para o Tigre. Não chegou a assinar contrato e, em fevereiro, anunciou que já tinha contactado o treinador Carlos Bianchi e iria voltar a ser jogador dos xeneize. Para Javier Milei, o avançado nunca poderia ter regressado ao clube.

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“Foi um ato de populismo. Quando o Daniel Angelici [então presidente do Boca] trouxe o Riquelme de volta, algo que ele sabia que era um roubo, disse que já era suficiente viver num país populista”, explicou o agora presidente da Argentina numa entrevista ao El País, reconhecendo que esse foi o segundo momento de afastamento do clube. O primeiro, dois anos antes, apareceu com o fim da carreira do ídolo Martín Palermo — algo que o levou a deixar de ir à Bombonera por “não suportar a tristeza”.

O divórcio, porém, só apareceu com a final da Taça Libertadores de 2018. No Santiago Bernabéu, já que o jogo decisivo passou para Madrid depois de violentos confrontos na primeira mão em Buenos Aires, o River Plate venceu o Boca Juniors e conquistou a principal competição de clubes da América do Sul — e Javier Milei acabou a partida a torcer pelo eterno rival.

“Tornei-me anti-Boca no momento em que entrou o Fernando Gago nessa final. Não vou torcer por um clube que toma decisões populistas. Foi um péssimo jogador, uma das maiores mentiras do futebol argentino. O Gago não existe, é um oxímoro. Agora que ele já não joga já não sou anti-Boca, só não sou do Boca”, disse na mesma entrevista ao El País, referindo-se ao médio que representou Real Madrid, Roma e Valencia na Europa.

Riquelme e Gago, porém, não foram os únicos alvos de Javier Milei no universo do futebol. Nos últimos anos, a partir do momento em que se tornou uma figura pública devido aos comentários que fazia na televisão, o agora presidente foi sempre muito crítico de Diego Armando Maradona. Recordou inúmeras vezes o facto de o antigo jogador ter tatuagens de Che Guevara e Fidel Castro e chegou a chamar-lhe “Mardedroga” nas redes sociais, estabelecendo as diferenças entre o argentino e Pelé com recurso a elementos como “beijos na boca a homens” ou “overdoses”.

A ligação de Javier Milei ao futebol, porém, começou desde cedo e não está exclusivamente ligada ao Boca Juniors. Foi guarda-redes nas camadas jovens do Chacarita Juniors, fazendo parte de uma geração da formação que foi das melhores da história do modesto clube de Buenos Aires. “Entrou aos 12, 13 anos. Estava na baliza como está na vida. Atirava-se para todos os lados, não se importava com nada, era um tipo forte, grande, um pouco louco. Um bom guarda-redes”, contou Gabriel Bonomi, que fazia parte da mesma equipa, ao Olé.

“Se tinha de se atirar contra o poste, atirava-se contra o poste. Ia a todas as bolas, era um louco na baliza. Podia correr bem ou correr mal, mas sinceramente não me lembro de termos perdido um jogo por culpa dele. Fazia coisas em que dizias mesmo ‘este tipo está completamente maluco’”, acrescentou, recordando vitórias em torneios contra o Vélez Sarsfield onde jogava, na altura, um jovem Diego Simeone.

As recordações de Javier Milei dentro do balneário, porém, são distintas. Os mais próximos lembram um guarda-redes extrovertido, uma personalidade mais semelhante do que se viu durante a campanha eleitoral; os mais distantes lembram um guarda-redes introvertido, calado e comprometido com os próprios pensamentos.

“Era muito altivo, forte. E isso não mudou, continua assim. Quando o vejo na televisão desato a rir porque penso logo ‘este tipo não mudou nada’. Claro que estamos mais crescidos, mas continua a ter o mesmo temperamento”, recorda Bonomi. Já Omar Corsaro, outro colega, tem outras memórias. “Era tranquilo. A personalidade que mostra agora não tem nada a ver com aquilo que era quando era miúdo. Não era conflituoso, não discutia com ninguém. Era muito introvertido, calado. Quando o vi na televisão, no início, pensei que era uma personagem que tinha criado para estar ali”, explica.

O agora presidente da Argentina deixou o futebol aos 17 anos, altura em que decidiu ir para a universidade estudar Economia, mas continuou a acompanhar o fenómeno e a considerar-se um fiel bilardista, um apaixonado pelas ideias do antigo treinador Carlos Bilardo que conquistou o Mundial 86 com a Argentina de Maradona. “O importante é o resultado”, chegou a dizer para resumir a filosofia em que acredita. E o resultado ditou que o outrora guarda-redes “louco” vai agora defender as redes da Casa Rosada.