Quem leu Astérix e Cleópatra sabe que o nariz da Esfinge foi partido por Obélix quando quis trepar por ela acima. O que não sabíamos é que, durante a Batalha das Pirâmides, em 1798, Napoleão Bonaparte tinha destruído o topo de duas das pirâmides de Gizé a tiros de canhão (o governo egípcio deve mais tarde tê-las reparado, a bem do património cultural da humanidade, e do turismo). Ridley Scott filma este disparate sem fundamento histórico a certa altura do seu Napoleão, quando da campanha napoleónica no Egito, justificando-o porque representa o poder militar do imperador e das forças francesas (podia, em vez disso, ter mostrado um plano com as forças inimigas a ser dizimadas pela artilharia do invasor, mas isso talvez fosse banal demais).

[Veja o “trailer” de “Napoleão”:]

Uma tal fantasia mascarada de “liberdade” dramático-simbólica seria desculpável se Napoleão fosse um bom filme. Mas sucede que Ridley Scott, autor de um dos melhores filmes passados na era napoleónica, O Duelo (1977), que foi também a sua primeira longa-metragem, realizou aqui um dos piores filmes de sempre sobre o oficial de artilharia corso que chegou a imperador dos franceses. Napoleão é um pastelão dos grandes: enfadonho e pesadão, sem substância dramática e fluência narrativa, nem um ponto de vista claro e sólido sobre a personagem que quer retratar, e que falha em todos os registos de que lança mão: a biografia, o melodrama íntimo e a grande produção histórico-militar. Neste último caso, então, não passa sequer uma brisa, quanto mais um sopro épico.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja uma entrevista com Ridley Scott:]

Nem precisamos de invocar alguns dos melhores filmes sobre Napoleão como termo de comparação, caso do brilhante e esmagador Napoleão (1927) de Abel Gance, com Albert Dieudonné no papel principal; ou do Napoleão de Sacha Guitry (1955), que continua impressionante apesar de alguma teatralidade, e desdobra por dois atores o papel de Napoleão, Daniel Gélin na juventude e Raymond Pellegrin (talvez o melhor Napoleão do cinema) na idade adulta. O Napoleão de Ridley Scott é história trocada por miúdos muito miudinhos, biografia em pastilhas insípidas, e cinema parco em emoção e falho de chama, tendo um Joaquin Phoenix parado, vago e sorumbático no papel principal, a insinuar uma dimensão “enigmática” na personagem que na realidade não está lá (e aquele vestígio de lábio leporino no ator é uma distração visual permanente, podia ter sido ocultado por maquilhagem ou digitalmente).

[Veja uma sequência do filme:]

Posto ao lado de Napoleão, Reino dos Céus (2005), outra grande produção histórica de Ridley Scott estrondosamente falhada, quase faz figura de bom filme. Napoleão parece a versão para cinema, comprimida em duas horas e meia (há, segundo Scott, um “director’s cut” do filme com quatro horas e meia), de uma série de televisão muito mais longa – e não muito boa. É uma sucessão de “quadros” despachados às três pancadas, de sequências ilustrativas e de exposição ultra-sintéticas, do Terror ao Consulado e ao Império, entremeadas com a progressão militar e a ascensão política do protagonista. E que deixarão a ver navios quem não tiver um conhecimento mínimo da época histórica que o filme abrange, nem da figura de Napoleão Bonaparte.

A história de amor entre o imperador e Josefina (uma subaproveitada Vanessa Kirby) é o único (e ténue) fio condutor da fita (Ridley Scott sugere que Napoleão só queria conquistar o mundo para poder conquistar Josefina e mantê-la consigo, o que é, no mínimo, uma tese original…), os grandes marechais ficam a fazer de figurantes e as sequências de batalha, com a exceção da de Waterloo, um pouco mais longa, sofrem quase todas do já referido frenesim sintético do realizador (e por que diabo são sempre todas tão escuras?). A que não escapa também a Campanha da Rússia, reduzida a algumas escaramuças, a um incêndio de Moscovo digital e a uma retirada em que as devastações do Inverno russo sobre as tropas são ilustradas pelo “cliché” dos soldados a comerem os cavalos.

[Veja uma sequência do filme:]

Como já referiu, após ver o filme, o historiador Thierry Lentz, um dos maiores especialistas franceses em Napoleão e na era napoleónica, o Napoleão de Joaquin Phoenix não é nem “revolucionário, nem imperial”, e o homem e líder carismático, o génio militar e o tirano que muitos acolheram como libertador (como sucedeu em Portugal com parte das nossas elites, quando das invasões francesas) nunca fica bem caracterizado, seja na psicologia, seja no temperamento, nas ambições e nos desígnios. Ele é também estranhamente passivo (menos quando se enfurece com as infidelidades de Josefina e os boatos e caricaturas nos jornais ingleses sobre as mesmas, ou quando o agridem durante o Directório) e até um pouco ridículo (ver a sequência final em que mente à filhas do governador de Santa Helena), e Ridley Scott acaba por sacrificar mesmo ao lugar-comum do “monstro assassino” de tintas hitlerianas, com a lista final de mortos nas várias batalhas napoleónicas.

Este é um daqueles filmes que dão razão aos que dizem que o cinema não só raramente é um bom professor de História, como tende vezes demais a travesti-la e falseá-la, mesmo invocando as melhores razões. Napoleão falha como biografia, falha como drama, falha como evocação histórica e falha também como espectáculo. Para veremos o melhor Ridley Scott a filmar bem, com veracidade, nervo, coração e garra visual, a época napoleónica e o século XIX, é regressar a O Duelo