Faltavam poucos dias para o país ser atirado para casa, em confinamento, por causa da pandemia de Covid-19. Pedro Nuno Santos, então ministro das Infraestruturas, assumia no Parlamento, numa interpelação do Bloco de Esquerda, a propósito do serviço dos CTT e em que requeria a nacionalização da empresa, que “a privatização dos CTT, sabe hoje muito bem o país, foi um erro grave que não acautelou o interesse do povo. Cabe-nos a nós ter a humildade para saber tirar as lições sobre decisões passadas”. E não excluía, pois, a reentrada do Estado no capital da empresa. Dizia mesmo que “não excluímos o eventual recurso a medidas mais ousadas”, ao mesmo tempo que dizia que, “nas últimas duas décadas e meia, o país privatizou demasiadas empresas públicas e privatizou mal, mesmo – não há problema em admiti-lo – quando foram governos do Partido Socialista a fazê-lo”.

Os CTT, no entanto, tinham sido vendidos pelo Governo PSD/CDS, com o país sob intervenção da troika. Pedro Nuno, nessa interpelação no Parlamento a 12 de março de 2020, respondeu a isso mesmo: “Bem sei o que o PSD e o CDS vão dizer: a sua privatização estava prevista no memorando da troika, negociado e assinado pelo PS. Seja: essa privatização estava mal prevista”. Pedro Nuno Santos tinha assumido, um ano antes, a pasta das Infraestruturas, ficando com a tutela dos CTT. E foi o atual secretário-geral do PS (eleito em dezembro passado, depois de António Costa se ter demitido) que negociou o novo contrato de concessão com os CTT que entrou em vigor em fevereiro de 2022.

Quando Pedro Nuno Santos fez o ataque à privatização dos CTT, no Ministério das Finanças ainda se sentava Mário Centeno. Mas foi o seu sucessor, João Leão, que assumiu o título de ministro em julho de 2020 (quando Centeno rumou ao Banco de Portugal), que assinou, segundo o Jornal Económico, um despacho mandatando a Parpública a comprar ações dos CTT.

O despacho não foi tornado público e a Parpública nunca informou sobre qualquer compra de ações dos CTT, embora tenha outras participações de baixo valor (como na Nos que chegou a estar expressa, havendo agora uma indicação de outras participações que no último relatório semestral estão contabilizadas em 1,35 milhões de euros — podendo não ser todo o valor relacionado com os CTT) que indica no relatório e contas. Daí o Económico falar em participação secreta e da qual a Iniciativa Liberal já pediu explicações.

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A Parpública, que continua a não dizer quantas ações comprou, qual a posição que tem nos CTT, nem explica porque o fez, diz apenas, através de fonte oficial, que “se trata de uma participação residual e que a mesma será identificada na carteira de participações nos próximos relatórios. Nada mais a acrescentar”.

Do Governo, o silêncio é absoluto. O despacho saiu, segundo apurou o Observador, do gabinete do então secretário de Estado do Tesouro. No ministério de João Leão, o secretário de Estado do Tesouro era Miguel Cruz (que tinha saído da Parpública) e que foi mais tarde para a IP, onde ainda permanece. O Observador não conseguiu, até ao momento, obter esclarecimentos nem dos ministérios, nem dos anteriores titulares da pasta (João Leão e Pedro Nuno Santos).

Governo negociava novo contrato de concessão

Segundo o Económico, a Parpública terá feito compras de ações dos CTT em plena pandemia, em 2020 e 2021. Segundo o gráfico de cotações, assistiu-se nessa altura a um período em alta da cotação que a 12 de julho de 2021 atingiu os 5,21 euros. Atualmente a cotação está nos 3,54 euros (fecho desta terça-feira, 2 de janeiro). No início de 2020 transacionava nos 3,2 euros. No final de 2020 cada título valia 2,38 euros, para depois ao longo de 2021 começar a subir até atingir os tais 5,21 euros a 12 de julho. Uns dias antes, a 7 de julho, houve um pico de transações em volume de ações (no gráfico são as barras) com um total transacionado nesse dia de 3,2 milhões de ações.

Fonte: CTT

As declarações de Pedro Nuno Santos já tinham sido proferidas antes desse pico, mas nessa mesma altura o seu gabinete reiterava a possibilidade de o Estado entrar no capital da empresa. Numa resposta ao grupo parlamentar do PCP, datada de 13 de julho de 2021, a chefe do gabinete de Pedro Nuno Santos, Maria Araújo, escrevia que “o Governo reafirma que não descarta a possibilidade de entrar no capital dos CTT”, mas não se falava de qualquer despacho nem de qualquer compra de ações.

Nessa altura, estava a ser negociado um novo contrato de concessão, já que o existente terminava em dezembro de 2021, isto depois de ter sido prolongado por um ano (desde dezembro de 2020) de forma unilateral pelo Governo dando como justificação a pandemia (o que determinou, entretanto, por tribunal arbitral que o Estado pague 23,6 milhões de euros aos CTT). O novo contrato entrou em vigor em fevereiro de 2022, depois de uma negociação que acabou por tirar poderes à Anacom nomeadamente no estabelecimento dos critérios de qualidade de serviço que os CTT contestavam.

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Pedro Nuno Santos era o titular da pasta quando o novo contrato foi entregue aos CTT até 31 de dezembro de 2028. Em fevereiro de 2022 quando o contrato foi assinado, o Governo já estava em gestão. Tinha caído depois de chumbado o Orçamento do Estado para 2022, em outubro de 2021. O Económico escreve que a aquisição de uma participação nos CTT seria uma das moedas de troca do Governo para que Bloco de Esquerda aprovasse os orçamentos de 2021 e de 2022. O de 2021 ainda passou no Parlamento com abstenção do PCP, tendo sido o último da geringonça. O Bloco votou contra. O seguinte, de 2022, já não passou, e o Governo caiu, tendo chegado, nas eleições de janeiro de 2022, a uma maioria absoluta.

Pouco se falou, depois disso, dos CTT, ainda que Bloco e PCP mantivessem sempre a posição de que a empresa deve ser pública. Pedro Nuno Santos manteve-se, no Governo que saiu das eleições de janeiro de 2022, ministro das Infraestruturas, mas o foco foi colocado, então, na ajuda à TAP que ascendeu a 3,2 mil milhões de euros e que, em 2023, esteve a ser escrutinado na comissão parlamentar de inquérito. Pedro Nuno deixou o cargo antes da comissão parlamentar, já por causa da indemnização paga a Alexandra Reis na TAP de quase meio milhão de euros.

Para o seu lugar, no Ministério, acabou por ir João Galamba. Este foi o primeiro tema que, enquanto titular da pasta, teve de defender no Parlamento. E aos pedidos da esquerda de nacionalização, Galamba assumiu: “a decisão, na altura [da privatização], não foi a melhor e não acautelou os interesses das populações e territórios. Mas importa não cair no erro do PCP e Bloco — para quem tem um martelo, todos os problemas são um prego. A decisão de privatizar não foi a melhor decisão. Temos muitas dúvidas também que a decisão de reverter seja a melhor decisão. As preocupações manifestadas [pelos dois partidos] têm fixação na questão da privatização”. E com esta afirmação chegou, então, também o elogio à gestão da empresa.

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Os CTT pouco mais vezes foram tema no Parlamento desde então. Até que agora se descobre que havia ordens para se comprar ações da empresa gestora do serviço postal, sem que a ordem de compra tivesse sido revertida.

Não houve parecer para a compra

A determinação para a Parpública comprar ações dos CTT saiu do Terreiro do Paço, sem que seja público qualquer parecer da Unidade Técnica de Acompanhamento e Monitorização do Setor Público Empresarial (UTAM), como determina o diploma que rege o setor empresarial do Estado. Segundo esta legislação, “a aquisição ou alienação de participações sociais pelas empresas públicas do sector empresarial do Estado carece de autorização dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e do sector de atividade”, o que foi dado. Mas acrescenta-se que “o pedido de autorização deve ser acompanhado por um estudo demonstrativo do interesse e da viabilidade da operação pretendida”. Só que, neste caso, não foi um pedido da empresa pública ao Governo, mas o inverso, pelo que, segundo entendimento de algumas fontes ligadas ao processo, o parecer da UTAM seria opcional.

Segundo escreveu o Económico, a Parpública, neste caso, terá pedido instruções escritas ao Governo para a compra de ações. A Parpública assume que a posição que detém é residual. Ao abrigo da legislação que rege as empresas cotadas, um acionista que ultrapasse 2% de participação terá de fazer comunicado ao mercado. A Parpública não chegou a atingir essa posição e, por isso, não há comunicação. No entanto, já como empresa pública, a Parpública deveria informar dessa posição nos seus relatórios. Até ao momento nada é referido, mas a empresa já fez saber que a informação constará nos próximos documentos.

Ter 2% não dá, no entanto, qualquer poder especial ao seu detentor. Só uma posição equivalente a 10% poderia garantir a nomeação de um representante do Estado na administração, a menos que houvesse acordo com o acionista maioritário para que entrasse nas suas listas.

A venda dos CTT avançou com o programa de ajustamento financeiro, da troika. Foi uma das empresas que foram vendidas nesse âmbito. O encaixe, em duas fases de privatização, superou os 900 milhões de euros. Foi nesse âmbito que os CTT ficaram cotados em bolsa.

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António Pires de Lima, então ministro da Economia do governo de Passos Coelho, considerou, em setembro de 2014 (quando foi a segunda fase de privatização), que a operação tinha sido de enorme “êxito”. “Não foram 300, nem 400, nem 500 milhões de euros o que o Estado arrecadou. Com esta privatização conduzida em duas fases e que usou o mercado de capitais como único instrumento de venda da empresa, foram mais de 900 milhões de euros. Isto é um enorme êxito tanto para o Estado como para a equipa de gestão dos CTT”, declarou à agência Lusa.