O mistério existia desde a promulgação do novo Regime Jurídico de Urbanização e Edificação — a ‘lei malandra’ que, como o Observador avançou em exclusivo, está sob suspeita nos autos da Operação Influencer e que levou o Ministério Público a imputar o alegado crime de prevaricação ao primeiro-ministro António Costa em regime de co-autoria com o ex-ministro João Galamba e os advogados João Tiago Silveira (sócio da Morais Leitão e coordenador do Simplex dos licenciamentos) e Rui Oliveira Neves (sócio da Morais Leitão e administrador da Start Campus).

Justiça trata da mesma forma Costa e Montenegro?

Mas é o próprio Presidente da República que faz questão de esclarecer, num ato pouco habitual, que não promulgou a alínea da chamada ‘lei malandra’ que iria alegadamente beneficiar a Start Campus. E mais: faz mesmo questão de acrescentar que há uma parte da lei que foi promulgada que tem a ver com parques industriais mas que não poderá beneficiar a Start Campus porque a lei diz respeito a organismos públicos que queriam promover tais infraestruturas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Esclarecendo que a proposta original do Governo foi devolvida a “15 de dezembro de 2023”, tendo em conta, entre outras razões, “as dúvidas e controvérsias relativamente ao diploma, em particular as partes relativas ao licenciamento industrial”, a Presidência da República afirma na sua nota que só a “27 de dezembro de 2023 deu entrada uma nova versão do diploma, em relação à qual o Governo informou que foi expurgada a parte relativa à diretiva, a matérias relativas a processos em curso, ao licenciamento industrial, mantendo, apenas, as relativas ao urbanismo e ao ordenamento do território”, lê-se no comunicado.

Influencer. Costa suspeito de prevaricação devido a “lei malandra” negociada por Galamba e João Tiago Silveira

O diploma promulgado inclui o art. 7.º, n.º 1, alínea b), ponto V que versa sobre isenção de licenciamento de operações urbanísticas promovidas pela Administração Pública que digam respeito a “parques industriais, empresariais ou de logística, e similares, nomeadamente zonas empresariais responsáveis (ZER), zonas industriais e de logística”.

O Observador questionou esta manhã a Presidência da República sobre se esta alínea beneficiaria o projeto do data center da empresa Start Campus. A resposta veio no comunicado agora emitido, no qual Marcelo Rebelo de Sousa faz questão de esclarecer publicamente que tal alínea “diz respeito a operações urbanísticas promovidas por entidades públicas. Este artigo não inclui a matéria que cobria operações promovidas por entidades privadas em parques industriais”, acrescentando que tal matéria já fazia parte do texto do diploma proposto pelo Governo e “mesmo do anteprojeto apresentado à Assembleia da República”.

O que está em causa no diploma publicado no DRE

Só esta segunda-feira é que foi esclarecido com a publicação em Diário da República Eletrónico da versão final que foi promulgada por Marcelo Rebelo de Sousa. E da mesma não faz parte a famosa alínea h), do n.º 1 do art. 7.º. Segundo o MP, esta alínea fazia parte da versão que foi aprovada pelo Conselho de Ministros de 19 de outubro, após ter sido precedida de intensas negociações entre João Tiago Silveira, João Galamba e o administrador Rui Oliveira Neves para alegadamente favorecer a Start Campus.

O alegado favorecimento seria simples: a empresa do data center de Sines ficaria isenta do licenciamento das operações urbanísticas em futuras expansões, já previstas, da sua infraestrutra.

Ora, e tal como a Presidência da República já tinha anunciado de forma vaga no seu comunicado de 4 de janeiro em que anunciou a promulgação, Marcelo Rebelo de Sousa forçou o Governo de António Costa a retirar “questões mais controversas do diploma”, como é a já referida alínea feita com a Start Campus em mente.

E, de facto, uma consulta da lei promulgada agora publicada em DRE permite perceber que tal alínea não faz parte do diploma.

MP entende que crime consumou-se à mesma

Seja como for, e do ponto de vista estritamente criminal, a retirada da referida alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º da nova lei acaba por ser irrelevante.

Tal como o Observador já tinha avançado na passada sexta-feira, do ponto de vista do Ministério Público, há uma dupla consumação do crime em dois momentos diferentes – e ambos independentes da questão da promulgação do Presidente da República:

  • Quando os governantes negoceiam com a Start Campus os termos da referia alínea para alegadamente beneficiar a empresa;
  • E quando o diploma é aprovado em Conselho de Ministros.

Recorde-se que António Costa fez uma referência explícita ao diploma aprovado pelo Conselho de Ministros a 19 de outubro na declaração que fez ao país no dia 11 de novembro, quatro dias após se ter demitido, para explicar alguns dos temas que estavam sob investigação.

“O meu Governo iniciou em 2021 o Simplex do licenciamento. Foi objeto de ampla e participada discussão públicas (…)”, sendo que o diploma aprovado pelo Governo a 19 de outubro “já foi enviado para Sua Excelência o sr. Presidente da República para apreciação e desejável promulgação”, afirmou o primeiro-ministro, pressionando assim Marcelo Rebelo de Sousa a aprovar o diploma governamental.

Certo é que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa deixou passar o prazo de 40 dias para promulgar o decreto-lei aprovado pelo Conselho de Ministros a 19 de outubro — porque estava a negociar alterações com o Governo, o que fez alargar o referido prazo.

No comunicado publicado esta segunda-feira, a Presidência da República esclarece que tal prazo constitucional de 40 dias “decorria até 19 de dezembro de 2023”.

“Contudo, e para evitar uma potencial infração à data-limite de transposição de diretivas, no dia 29 de novembro de 2023 foi aprovado em Conselho de Ministros um diploma, que viria a ser publicado como Decreto-Lei n.º 114-B/2023, de 5 de dezembro, transpondo a Diretiva 2021/11/87, cuja aprovação estava já prevista no projeto de diploma referido acima. Este novo diploma, com a transposição da diretiva, deu entrada na PR a 4 de dezembro, foi promulgado a 5 de dezembro e publicado no mesmo dia no Diário da República. Ou seja, o Governo autonomizou do projeto de diploma referido acima, a parte relativa à transposição da diretiva, tendo sido aceleradas a sua aprovação, promulgação e publicação”, lê-se no comunicado.