Trata-se, é verdade, da reimpressão de um livro lançado em finais de 2012, mas é tão maravilhoso que só podemos apreciar que não tenha sido esquecido pelo próprio editor, na habitual voragem do ofício de lançar títulos novos, igualmente muito bons, dos mesmos autores ou de outros, sejam eles “prata da casa” ou não. E assim também somos recordados de que há uma dúzia de anos já a edição portuguesa alcançava máximos olímpicos nesta exigente prova da literatura infanto-juvenil, e neste caso em particular sublinhando que “fazemos do “objeto livro” um lugar verdadeiro, onde os leitores participam na construção de cada aventura, jogando, brincando, produzindo sons e movimentos. Livros em papel interactivos e digitais? Nem mais”.

Noutras palavras, em 2012 era já claro que havia uma batalha a travar contra o risco de domínio do audiovisual e do digital sobre a fantasia, a aprendizagem e a imaginação dos mais pequenos, ainda que — quase paradoxalmente — fossem ferramentas digitais a oferecer uma estrondosa alavanca para a qualidade da ilustração enquanto arte e para que o ecrã do computador se tornasse a plataforma ágil de experimentação e criação visual, afinando soluções que anteriores processos de produção gráfica jamais conseguiriam proporcionar.

Tudo isso faz com que a atenção das famílias ao alto padrão dos livros para crianças atualmente feitos entre nós se possa tornar um fator de qualificação humana das novas gerações — e bem precisados estamos que o sejam. Mais que de um retrocesso, é de um enorme passo em frente que se trata. Maiores tiragens reduziriam o preço de capa, ao mesmo tempo que a aquisição regular por bibliotecas públicas e a prática muito mais alargada do empréstimo domiciliário — que importa fomentar com uma campanha específica — facilitariam o acesso de todos à leitura, rompendo progressivamente círculos viciosos de pobreza material e espiritual.


Título: “O Que Há”
Autoras: Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso
Editora: Planeta Tangerina
Páginas: 40

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É, de facto, uma oportunidade dourada esta de termos excelentes editores de literatura infanto-juvenil que já ganharam velocidade de cruzeiro e constituem praticamente uma geração ainda com duas ou três décadas de trabalho pela frente, e que alcançou prémios internacionais e vendeu direitos de edição para mercados muito maiores do que o nosso, incluindo o chinês. Na contracapa, esta reedição de O Que Há transcreve apreciações muito laudatórias de duas instituições da especialidade, o Children’s Books Ireland e a australiana Kids’ Book Review.

E não é para menos. A partir de sete situações apenas — “O que há na mala da mãe?”, “O que há na gaveta da mesa da entrada?”, “O que há na bancada da cozinha?”, “O que há no frigorífico?”, “O que há na parede do meu quarto?”, “O que há no bolso do meu impermeável?” e “O que há no saco de praia da minha avô?” —, Isabel Minhós Martins conseguiu invocar, com os admiráveis desenhos de Madalena Matoso, a grande misturada de objetos que graúdos e pequenos acumulam no seu quotidiano, através dos quais cada um de nós — sem o saber, eventualmente — dá expressão única à sua própria e indisputável originalidade, mas nos quais também é reconhecida a erosão do uso e do tempo: “um cavalinho de madeira partido”, “um batom com a ponta esborrachada”, um brinco que perdeu o par, “um colar partido com 28 contas brancas”, “um baralho de cartas que deve estar incompleto”, “um telemóvel perdido”, “uma pilha (deve estar gasta)”, “um bilhete de autocarro do ano passado”, “uma bolacha de água e sal esmigalhada”, “um avião com a cauda partida”, entre outros.

O livro convida os leitores de palmo e meio a lembrarem de coisas fora do lugar (há até uma carta de jogar dentro do frigorífico!) ou a identificar uma que não haviam visto antes — e integrar todo esse desgaste físico e esse caos dispersivo na perceção do que nos rodeia é um bom exercício educativo. O jogo da última página, Abre os Olhos e Descobre, vem sugerir uma revisitação das constelações de objetos representados nas duplas páginas precedentes.

O livro é tão graciosamente audacioso nessa empatia intergeracional, que não lhe faltam os pensos rápidos com desenhos de piratas nem os ursinhos pequeninos a tocar tambor, nem o autocolante com um dinossauro, nem o tosco relógio desenhado num papel por Simão Abreu, muito provavelmente filho de uma das autoras. A arte do livro infantil, além de tudo o resto, deve ser mesmo um grande divertimento.