A frase rompe o silêncio com eficácia de lâmina. Impõe uma breve pausa. Um apontamento ágil no bloco de notas. “É preciso respeitar a faca”, dirá a certa altura Habner Gomes. Uns escassos outros rabiscos nossos se seguirão ao longo de uma experiência movida a detalhe. Tantos mais ficaram pelo caminho — perdoe-nos, mas é natural que estejamos mais concentrados no paladar que no sentido da audição. Por essa altura, já nos maravilhámos com o niguiri de robalo, o sashimi de bonito com sésamo torrado e soja envelhecida ao longo de dez anos, o miso de barriga de atum, a tempura de ostra do Sado, ou o salmonete braseado com redução de carabineiro e caviar.
O resultado de oito anos de preparação intensiva revela-se na barra do Mattë, o restaurante que abriu portas com o contratempo da pandemia, e que desde novembro apresenta um menu especial ao balcão que merece viralizar sem receios.
São 12 momentos, sempre únicos e inesperados, para um leigo esquecer tudo o que sabe (ou que julga saber) sobre o sushi. Já agora, e por razões óbvias, deixamos a etiqueta “Cuidado, está quente!” para futuros textos. Por hoje, imaginemos que criámos uma de propósito: “Cuidado, está fresquíssimo!”
Kaiseki, a cozinha estranha de Quioto que se entranha num ápice
“Pedra quente repousando sobre o estômago”, ou a “cozinha estranha de Quioto”. São duas das definições usadas para descrever o menu kaiseki com as suas técnicas peculiares, explica o chef. Aqui é composto por metade das etapas originais, para uma dança de pratos onde se acomoda o melhor da sazonalidade.
80% do peixe é proveniente dos Açores e os restantes 20% do Algarve (a amêijoa e o camarão, por exemplo). Ponto relevante: o salmão não entra nesta história, nem as ovas selvagens, por uma questão de sustentabilidade. “O japonês come truta salmonada, não salmão”, frisa o chef.
Não há dois jantares iguais e o efeito surpresa é um dos ingredientes essenciais, uma máxima que de resto costuma ser seguida em todo o restaurante — apesar da carta, é frequente, garantem-nos, os clientes depositarem a sua escolha nas mãos de quem os serve.
Quanto a este kaiseki, bebe da inspiração nan ban. “Quando os primeiros portugueses chegaram ao Japão, no século XVI, levaram grande influência da gastronomia europeia e é nessa época que nos inspiramos. Levaram a técnica da tempura e marinados, introduziram o ovo e o açúcar. Tentamos trazer essa ligação entre ocidente e oriente.” Acrescente-se que 90% do produto tem origem portuguesa, menos o que não é possível, como as algas ou o vinagre.
Tudo começa com um momento (Sakizuke) simples, para preparar o palato para o que se segue. Segue-se o Hassun, o prato indicador da estação do ano e que contém elementos de carne, peixe, ovo e vegetais. Depois um caldo (Suimono), de amêijoa dos Açores, por exemplo, e o Mukozuke, um prato de sashimi (três tipos de toro, um ou mais dos quais maturado por Habner, é uma das hipóteses). O Mushimono é um prato a vapor que recorre habitualmente a partes dos peixe (como a cabeça). “É um menu muito elegante que tem por base observar as estações do ano. No inverno e outono usamos uma louça mais escura, com pratos mais quentes, e no verão, cores mais vivas e um menu mais vibrante”.
Um dos momentos mais esperados é o interlúdio dos niguiris, uma luxuosa roda viva para testar a agilidade de quem prova. São preparados ao momento pelo chef, com uma seleção de peixes (lírio dos Açores, dourada, pregado e toro fazem parte da seleção habitual) e devem ser consumidos, à mão, no tempo máximo de 20 segundos para manter os 32 graus do arroz e a frescura máxima do peixe. Ao cair deste pano, é impossível eleger o melhor. “Ótimo, os japoneses também não fazem diferença”. Por falar em arroz, é a estrela da companhia. “Um mau peixe pode ser disfarçado pelo arroz mas um mau arroz não se consegue disfarçar”, elucida Habner, retificando hierarquias e guiando-nos pelo moroso processo de confeção destes bagos. “O arroz é o mais importante no sushi e é o que nos distingue de outros restaurantes. Usamo-lo mais envinagrado, envelhecido dez anos em barricas de saké, o que traz muito mais potência de sabor. Nos niguiris, há uma regra sagrada: o sabor do arroz tem que prevalecer sempre”
Reserve espaço para o Gohan, de novo um prato à base de arroz que milita na categoria comida de conforto.
Quando chegamos à sobremesa (Yogashi), os olhos também comem o pudim de gengibre com caviar. Sem os típicos buraquinhos, com uma consistência impressionante, deriva do cruzamento entre uma antiga receita do desaparecido Aya e de uma receita familiar de Habner — confiamos que a alternativa do gelado de milho experimental cumpra igualmente bem.
Na rota da estrela
Inaugurado em 2020, o desafio extra inicial de um mundo em confinamento “acabou por ser um incentivo”, assegura Gustavo Neves, proprietário do Mattë. Ligado à restauração através da família, sempre teve como objetivo abrir o seu próprio restaurante asiático, projeto que concretizou depois de longas viagens mundo fora em busca de inspiração gastronómica. O fine dining japonês encontrou por fim morada fixa na zona de Santos, num espaço totalmente remodelado pelo arquiteto Romeu Martins. Quando soube que Habner Gomes saíra do posto anterior e que iria abandonar o país, agarrou o chef.
Quando arrancaram, recorda o chef, o conceito ainda não estava devidamente acertado (refira-se que à oferta de sushi se juntava então a carne maturada). No lugar do atual balcão, ao fundo do espaço, mantinham uma vitrina. Raramente serviam refeições nessa zona, desperdiçando um potencial rapidamente identificado por terceiros. “Foi-nos aconselhado que o balcão é que nos iria proporcionar chegar à estrela”, admite Habner. Hoje a fasquia é clara e elevada para ambos. “O meu grande objetivo na gastronomia é tornar Portugal uma referência na gastronomia japonesa, como São Paulo é. Ter uma estrela Michelin. Temos os melhores peixes do mundo, porque não?”, atira confiante. E será que já passou por aqui algum inspetor do famoso guia? “Acho que sim. Tomara que tenha passado!”
Natural de Minas Gerais, o brasileiro chegou a Portugal aos 14 anos. O irmão, que já era chef, iniciou-o na restauração, em Cascais, e desde logo em ligação direta com o sushi. “Só tive contacto com cozinha japonesa, dedico-me a 100 por cento desde o início”. Habner passou pelo Estado Líquido, Yakuza, ou Ikidashi, foi “absorvendo coisas boas” de cada casa, e em 2019 vez a sua desejada viagem ao Japão, pouco antes de ser desafiado para o Mattë.
Chegados a este patamar e nível de exigência o detalhe é fundamental. Manifesta-se em aspetos como o wasabi fresco que vem diretamente do Japão, a louça com assinatura do Studio Neves, as invisíveis três a quatro horas de preparação nos bastidores para que os clientes possam desfrutar de toda esta experiência, ou ainda no trabalho do sommelier Fábio Carvalho, entre um saké que abre caminho, um branco Vallado Prima, um Permitido Rabigato para cortar os sabores do sushi, ou um doce Ice Wine da Moldávia para rematar a refeição.
Nesta barra sentam-se até oito pessoas, uma experiência disponível apenas de terça-feira a quinta. O preço é de 125€ por cabeça com possibilidade de pairing extra com as bebidas.
Mattë, Calçada do Marquês de Abrantes, 22, Lisboa