São contas que se fazem por alto, com o risco que representa tirar as medidas exatas quando a área total do espaço chega aos 22 mil metros quadrados. “Talvez uns cinco milhões de litros só neste edifício”, estima Gonçalo Pereira da Fonseca sobre a capacidade para armazenar vinho na zona onde nos encontramos. O apelido lança a pista para esta visita. O bisavó era Abel Pereira da Fonseca, o empresário com visão que em 1917 recrutou o arquiteto Manuel Joaquim Norte Júnior para transformar um enorme armazém à beira Tejo num reduto cuja fachada permanece até hoje icónica na paisagem oriental da cidade. Em plena Praça David Leandro da Silva, o interior do edifício, com os seus recantos onde outrora se acomodaram pipas e áreas desafogadas, tem nova vida. Ao longo de três a cinco anos, é ao 8 Marvila que os caminhos alternativos das compras e lazer vão dar.(mais tarde, o espaço, propriedade privada, terá como destino um projeto imobiliário na cidade).
“Imensas vezes em família comentávamos o que se iria passar com este armazém, tinha uns restaurantes mas nunca pegou. E eu achava que tinha um potencial enorme. Depois vi no Instagram que isto estava a avançar.” Para Luísa Pereira da Fonseca, trineta do fundador, é como um regresso a uma casa que nunca chegou a conhecer. Estava em São Paulo quando começou a falar com José Filipe Rebelo Pinto, programador e curador deste complexo cultural, que a desafiou a regressar a Lisboa. “A minha tese foi muito relacionada com o 8 Marvila, o que podemos fazer na cidade para melhorar e dar nova vida aos sítios. Sinto-me muito grata e tem uma valor sentimental enorme. Parece que faz tudo sentido. As peças ligaram-se todas. Estava cheia de saudades da família e foi uma oportunidade ótima.”.
Luísa, de 22 anos, começou por fazer uma intervenção no corredor do 8, depois ficou com uma das pequenas lojas. “Gosto da envolvência, do que a arte pode mudar e valorizar em cada ambiente”. No passado dia 5 de janeiro, inaugurou aqui a coleção de vinte trabalhos produzidos durante a quarentena. “Fizeram sentir-me viva nessa altura. Não sou muito figurativa, está muito aqui a minha força interior e verdade. Tudo o que me vem à alma eu pinto”.
Do liceu Pedro Nunes para as artes plásticas nas Caldas da Rainha, e ainda uma pós graduação em Design de Jardins, seguida de um mestrado de Urbanismo e Arquitetura e Design já no Brasil. Agora em Marvila, onde em tempos idos se guardou vinho, a artista plástica recriou um ambiente de casa, “para que as pessoa se pudessem sentar e imaginar-se com estas obras na sala”.
De resto, não faltam referências que ligam todos os pontos de uma longa história familiar. “A minha bisavó usava óleos mas prefiro o acrílico sobre o papel. Gosto de deixar a mão livre.” A força do contraste entre o preto e branco prevalecem no trajeto da bisneta de Mimi Fernandes, centenária matriarca que morreu em janeiro de 2023, aos 105 anos. Tal como o gosto pelo grande formato, que permite “amplitude, força, energia e aproveitar os movimentos corporais mais rápidos e impulsivos.”, descreve Luísa, que tem trabalhado sobretudo com decoradoras, como Rita Roquette (dividida entre o Estoril e a Artilharia 1, em Lisboa). “Como sou de Cascais acabo por ser mais procurada por pessoas de Cascais, devem conhecer-me. Muitos estrangeiros também, que passam por aqui pessoalmente”.
Além das telas, podem passar os olhos sobre os sofás em cortiça feitos pela mãe e, claro, pelas garrafas que adornam uma das mesas, exemplificativas da aposta do pai e de mais um legado da família, onde os terrenos se cruzam. “O meu avô era filho do Abel Pereira da Fonseca e a minha avó descendia de um empresário ligado à cortiça. Depois, vim a casar com a minha mulher, e passa-se a mesma coisa. Eu nos vinhos, e a família dela na produção de cortiça no Alentejo. E obviamente temos a arte.” Do pai, Joaquim Maria Pereira da Fonseca, recém falecido, recorda a galeria de arte Multiface que manteve no Centro Comercial Gemini e os “trabalhos fantásticos” com Manuel Cargaleiro, Vieira da Silva, ou Artur Bual.
Sentado, a posar para a foto, Gonçalo recorda a cadeira reclinável “linda” que levou para Brasil, outrora pertença do bisavô. É do outro lado do Atlântico, depois de trinta anos no meio publicitário, que reinventou há oito anos a Val do Rio, outro emblema icónico da Pereira da Fonseca, cuja rede de garrafeiras chegou ao impressionante número de 140 na cidade de Lisboa no século passado.
“Deu origem à cadeia de retalho que o meu bisavô tinha em Lisboa. Tinha dois grandes ramos de negócio, o vinho a granel, em largas quantidades, e o vinho a retalho, engarrafado, ainda raro na altura. Terá sido das primeiras empresas a fazer distribuição. Peguei na marca que estava esquecida e renovei-a, abri uma loja Val do Rio no Brasil.” O foco não é Portugal, apesar de o cliente nacional poder comprar pontualmente através do escritório da marca. Ou então explorar os rótulos da empresa familiar do Bombarral a que se mantém ligado, a Companhia Agrícola do Sanguinhal – Quinta do Sanguinhal I Quinta das Cerejeiras I Quinta de São Francisco, cuja aguardente Fernando Pessoa tanto apreciava.
Nesse distantes anos 20, a cadeia de lojas foi modernizada em termos de estruturas, que “passaram a atrair pessoas de outro nível, escritores, aristocratas, era uma sala de chá de homens, em todos os bairros de Lisboa”. O poeta dos heterónimos desdobrava-se também em visitas assíduas a estes balcões da Baixa. “Consta que pegava no chapéu e dizia ‘vou ali no Abel’, para não se expor. Segundo ele, vários poemas foram ali escritos; há aquela imagem muito conhecida ao balcão a beber, o ‘flagrante delitro’, etc.”
Além do tinto alentejano, na galeria da filha Luísa também se expõe a ginjinha da Vitória, sob a alçada da Val do Rio, onde entra em cena a arte do rótulo, desenhado por uma agência brasileira. Na imagem, um painel de azulejos do século XVII adquire um toque vibrante e chama por novas intervenções de Luísa nesta galeria em transformação permanente. “Estou a pensar ir mudando, jogar com as cores e com as estações do ano. Com a primavera devo introduzir os rosés, cores mais frescas.”, diz a anfitriã.
Copo cheio no 8 Marvila
Os espaços livres vão sendo ocupados aos poucos e há (mais) novidades para breve nesta área que já está “100 por cento lotada”, adiantam-nos. À entrada do 8 Marvila, depois da decoração da Napu Runa, abrirá um Dear Breakfast. Ao lado das pizzas vegetarianas do Mato haverá ramen e sushi. A curta distância, os muito recomendáveis ovos rotos do 150 Gramas. Nos doces, o difícil será resistir à instagramável Scoop n Dough, com os donuts e gelados artesanais dos irmãos Darchite e Jimite Kantelal. Ao bar já disponível junta-se um outro, igualmente central, feito com antigos contadores dos armazéns.
Para comprar, ou apenas circular com tempo, há um pouco de tudo. Logo à entrada, um showroom das colunas e amplificadores Marshall, ao fundo um autêntico santuário ou selva verde para quem adora plantas, vasos, velas e derivados (é só perder-se na Planta Livre). Pelo caminho, a fotografia regressa aos tempos áureos da analogia pela mão da Lisbon Frame. Elisa Rezende serve tatuagens, a Anomaly (de Joana Matos) e a Black Mamba (de Carlota Capitão de Sousa) sugerem bons achados em segunda mão, consertam-se (e personalizam-se) bicicletas na RCICLA, há streetwear na RO Archive, e a arte continua de portas abertas na galeria Because Art Matters.
Quando o sol se põe, a discoteca Outra Cena complementa a oferta à Galeria Zé dos Bois. E para os mais atléticos, há 8 campos de paddle à mão de semear e ainda, em estreia na cidade, um campo coberto de pickeball, a modalidade que cruza ténis, badminton, ténis de mesa.
Lá por diante, o futuro dirá o que reserva a este 8 Marvila. Pode sempre ir tentando apurar esta e outras respostas com a ajuda da Cosmic Collective. “Quinta-feira é o dia das astrologia, sexta das constelações familiares, sábado é o dia do reiki e cartas e domingo é dia das terapias de massagem”, explica Cláudia Brito, uma da sócias e terapeutas, e a mestre de cerimónias nas late night readings de sexta e sábado à noite, para leituras de tarot fora de horas. “Vou estar aqui das oito à meia noite, vamos ver se a noite se prolonga. Acho que a noite pode convidar as pessoas mais céticas a experimentarem num contexto igualmente sério mas mais descontraído”.