O relatório elaborado por um procurador especial sobre o caso de documentos confidenciais que o atual Presidente norte-americano tinha na sua posse determinou que Joe Biden não vai enfrentar qualquer acusação judicial. Poderiam ser boas notícias para o chefe de Estado, mas o documento retrata um líder esquecido e incapaz de proteger informações sensíveis. A descrição já foi criticada pela Casa Branca e por alguns democratas e usada como arma por republicanos, num ano marcado por eleições presidenciais que deverão opor Biden ao ex-Presidente Donald Trump.
O documento redigido por Robert Hur começa por apontar que Joe Biden “reteve e divulgou deliberadamente” documentos confidenciais depois de ter sido vice-presidente de Barack Obama, mas o procurador determinou que não se justificam acusações judiciais já que as provas não imputam a culpa a Biden. Mas o relatório, nota a imprensa norte-americana, vai mais longe, com Hur a apontar que uma das razões pelas quais Biden não seria julgado é porque se iria apresentar perante o júri como um homem idoso “com má memória”.
Não obstante, numa conferência de imprensa citada pela BBC, o Chefe de Estado norte-americano negou que tivesse problemas de memória. “A minha memória está bem”, assegurou Joe Biden, que se indignou com o facto de que o relatório sugere que as suas capacidades cognitivas nunca mais foram as mesmas, desde que o filho mais velho, Beau Biden, morreu em 2015. “Como é que ele teve a audácia de se lembrar isso?”, questionou.
“Sou velho, mas sei bem o que estou a fazer. Coloquei este país novamente nos trilhos. Não preciso das suas recomendações [Robert Hurt]”, atirou Joe Biden.
No documento escrito por Hur, lê-se que, durante um julgamento, “o Sr. Biden provavelmente ia apresentar-se a um júri, como fez durante a entrevista que lhe fizemos, como um homem idoso, simpático, bem-intencionado e com uma memória fraca“. Acrescentou que seria difícil convencer um júri que um Presidente com mais de 80 anos era culpado de um crime que “requer um estado mental intencional”.
No relatório é mencionado, por exemplo, que o chefe de Estado “não se lembrava de quando tinha sido vice-presidente”, tendo-se esquecido no primeiro dia da entrevista quando terminou o seu mandato (“Se foi em 2013, quando deixei de ser vice-presidente?”) e, no segundo dia da entrevista, quando o mandato começou (“Em 2009, ainda sou vice-presidente?”).
Noutra passagem, diz-se que a memória de Biden parece ter “limitações significativas”: como exemplo, surgem as conversas que o líder norte-americano manteve com o escritor-fantasma que escreveu o seu livro de memórias (“Promise Me, Dad”) a partir de 2017 e que “eram dolorosamente lentas, com Biden a ter dificuldades em lembrar-se de eventos e esforçando-se em certos momentos para ler e explicar as suas anotações”. Há ainda uma outra referência ao facto de o Presidente não se recordar da data em que o filho, Beau, morreu e que a sua memória “parecia nebulosa” ao descrever o debate sobre o Afeganistão, que outrora foi tão importante para ele.
O relatório é publicado numa semana em que Biden voltou a ser notícia por gafes que cometeu em eventos públicos. O jornal The Guardian noticiou que numa campanha de angariação na quarta-feira, em Nova Iorque, Biden terá evocado uma conversa com o antigo chanceler alemão Helmut Kohl sobre as preocupações europeias quanto à tentativa de impedir a certificação da sua vitória nas eleições de 2020. Referia-se aparentemente a Angela Merkel, na altura chanceler e tendo em conta que Kohl morreu em 2017. Antes disso, no sábado, num evento no Nevada, Biden teria confundido o ex-Presidente François Mitterrand, que morreu em 1996, com o atual líder francês, Emmanuel Macron, ao descrever um episódio semelhante sobre a invasão ao Capitólio e os receios europeus.
O relatório de Hur não aludia apenas à memória de Biden, contendo também uma série de fotografias que mostram os documentos confidenciais em vários locais das casas do líder da Casa Branca. Algumas das imagens divulgadas pela imprensa norte-americana mostravam, por exemplo, a garagem da casa do Presidente, que “continha um volume significativo de caixas, objetos armazenados e entulho”, incluindo uma com documentos confidenciais relacionados com a política norte-americana do Afeganistão. “Entre os lugares em que os advogados do Sr. Biden encontraram documentos confidenciais na garagem estava uma caixa aberta e danificada contendo inúmeras pastas suspensas, pastas de arquivos e ficheiros“, refere, acrescentando que em alguns casos estavam documentos danificados, com partes rasgados e até arrancadas.
Os advogados do Presidente condenaram veementemente os comentários “inadequados”. Numa carta anexada no relatório, o procurador especial de Biden Richard Sauber escreve: “Solicitamos que revejam as vossas descrições da memória do Presidente Biden para que sejam expostas de uma forma que esteja dentro dos limites da vossa experiência e competência”. Argumentam ainda que o relatório “utiliza uma linguagem altamente depreciativa para descrever o que acontece frequentemente às testemunhas: dificuldade em recordar acontecimentos que aconteceram há anos”.
Os republicanos não demoraram a usar o relatório como arma de arremesso. “Quando não temos as faculdades necessárias para sermos julgados […], certamente não temos as faculdades necessárias para estar na Sala Oval”, afirmou o líder dos republicanos eleitos na Câmara dos Representantes, Mike Johnson. “Um homem idoso com má memória não deve ter os códigos nucleares”, disse Kevin Hern, congressista republicano de Oklahoma.
Personalidades do espetro conservador apelaram à implementação da 25.ª emenda à Constituição, que permite cessar as funções do Presidente se este já não tiver condições de as assumir. Marjorie Taylor Greene, leal a Donald Trump, afirmou que “se Joe Biden não é capaz de enfrentar um julgamento, certamente não é capaz, mentalmente, de ser Presidente dos Estados Unidos”.
Alguns democratas já saíram em defesa de Joe Biden. “O Presidente é muito adequado para ser o nosso comandante-chefe”, sublinhou, segundo o Axios, o representante do Nevada Steven Horsford.
Jamie Raskin, membro do Comité de Supervisão e Responsabilidade, destacou que a administração de Biden “cooperou totalmente” com a investigação das autoridades. Num comunicado citado pela BBC, sugeriu que este caso “tem semelhanças impressionantes com o tratamento de informações confidenciais do ex-vice-presidente Pence e do ex-presidente Ronald Reagan depois dos seus mandatos” e que não justifica acusações criminais. Fez também uma distinção entre os casos Biden e Trump. “Trump obstruiu os esforços das autoridades para recuperar centenas de documentos governamentais, escondendo-os deliberadamente, mentindo sobre o seu paradeiro e recrutando outros para destruir e ocultar provas.”
Artigo atualizado às 09h38 de dia 9 de fevereiro de 2024