Tem passos interessantes, mas daí a corresponder às ambições do título, ainda vai um longo caminho. Frédéric Gros, um intelectual que tem a Rive Gauche colada ao código genético, escreveu um livro sobre a ideia de caminhar. Capítulos curtos, agradáveis, com histórias engraçadas sobre Rousseau, Nerval ou Rimbaud, uma mundividência que lembra a literatura americana da fronteira, com Thoreau à cabeça, e uns pozinhos reflexivos.
Tudo estaria bem: o ritmo lento, de passeio, a sensação de que estamos a tocar a superfície de todas as coisas, com a amplitude das grandes paisagens, uma calma agradável, uma leitura sem muito esforço, naquilo que parece uma homenagem da escrita ao objecto. O passo maior do que a perna parece-nos estar na tentativa de transformar este bosquejo impressionista numa “filosofia”. A associação da filosofia à estética dos trilhos é antiga e tem um marco óbvio nos Caminhos da floresta, de Heidegger. A ideia de errância, de estarmos obrigados a agir num mundo para o qual não temos mapa, como se vagueássemos sem rumo, na tentativa de perceber o significado do próprio caminho, tem o seu lugar em quase todas as metáforas existenciais; está em causa uma ideia de filosofia vital, que não se vê a si mesma como um ponto em que a vida é suspensa para se pensar sobre ela, mas sim como uma ideia, ela mesma, sobre o modo de agir. Como se não falássemos de filosofia como uma disciplina, antes como uma tomada de consciência sobre o mundo, que o apresenta de uma forma diferente daquilo que um ponto de vista natural traz. Neste sentido, enquanto o quotidiano faria de nós uns servos mais ou menos fiéis dos desejos, transformando os dias em perseguições daquilo que a vontade nos fizesse desejar, a filosofia levar-nos-ia a suspender esse frenesim persecutório e permitiria, de facto, caminhar sem rumo.
Gros herda algo desta ideia de filosofia, e é ela, aliás, que lhe permite chamar, com muita liberalidade, “uma filosofia” a este caminhar. Se de facto tomarmos o sentido existencial da filosofia, ela pode de facto revelar-se em muita coisa. Não é apenas isto, contudo, que Frédéric Gros pretende ao usar a ideia de filosofia. Aquilo que se pretende é, de um modo assistemático, erigir uma filosofia “do caminhar”, isto é, dizer-nos que há características específicas no caminhar que fazem dele um modo de vida.
Título: “Caminhar – Uma filosofia”
Autor: Frédéric Gros
Tradução: Inês Fraga
Editora: Antígona
Páginas: 248
Ora, nisso, Gros parece-nos demasiado preso às suas pretensas liberdades. O facto de não acreditar na sistematização filosófica impede-nos de ter uma ideia sólida daquilo que faria do caminhar algo específico. Temos histórias de intelectuais, sim, prova-se que muitos filósofos gostavam de andar, que há certas obsessões ligadas aos passeios, mas isso não faz do caminhar algo intrinsecamente “filosófico”. Mais, as anedotas do livro distraem-nos do ponto principal, num paradoxo completo: o livro procura mostrar-nos que a caminhada impede as distrações e nos obriga a confrontarmo-nos com nós próprios, na nossa condição de parte integrante da natureza. Já não somos sujeitos, somos parte deste organismo maior; contudo, o que a estrutura do livro traz é mesmo um objecto ideal para “passar tempo”. Ninguém se incomoda com estes retratos amenos, ninguém se volta obrigatoriamente para si próprio quando conhece a vida atribulada de Rimbaud. A vantagem do sistema, do discurso filosófico, está no facto de nos obrigar a encarar a nossa própria vida como parte daquilo que está em causa – não há hipótese de fuga. Lemos Kant e percebemos que aquele é o nosso modo de pensar, não há outro. Lemos Heidegger e vemos como a nossa vida está conformada pela ilusão do tédio, de um modo a que não podemos escapar mas que nunca mais veremos da mesma maneira. Lemos Gros e as suas caminhadas e aquilo que percebemos é uma alternativa, uma variação. Podemos caminhar que nos sentiremos bem, fugiremos da vertigem do mundo, do consumo, em suma: fugiremos. Enquanto da grande filosofia é impossível escapar, o que Gros nos oferece é uma escapatória.
Note-se, ainda, que a filosofia da caminhada tem para Gros outro sentido particular. É que filosofia, para ele, mais do que uma análise sobre a possibilidade de alguma coisa, ou uma tentativa de explicar o que é que faz de uma coisa aquilo que ela é, passa pela subversão do que existe. Tantos anos a estudar Foucault tornam compreensível este entendimento: filosofia, para Gros, significa alterar o estado de coisas. Não há diferença entre filosofia e revolução, filosofia e subversão. Isto leva a que saltemos até alguns passos que seriam importantes na avaliação do que existe. Gros nem se preocupa em diagnosticar os males do mundo, em ver se aquilo que existe é bom ou mau. A filosofia é a alteração do estado de coisas, o que transforma o estado de coisas em algo intrinsecamente mau e o desafio a esse estado de coisas em algo bom. A caminhada não precisa de provar que é boa, só precisa de provar que é subversiva.
E se, convenhamos, se trata de um tipo de subversão um bocadinho aburguesada – o estado de coisas muito agradeceria caso os descontentes, em vez de plantarem bombas, decidissem optar pelas caminhadas – também as provas da sua marginalidade são circunstanciais. Gros não quer dar-nos a tradicional forma substantiva do argumento, derradeiro bastião da filosofia burguesa. Aquilo que resta, então, são alguns exemplos. É verdade que quando andamos não estamos distraídos por telefones, que a caminhada igualiza pois não é preciso técnica, que houve uma certa loucura desajustada associada a alguns caminhantes. O que é preciso é saber se alguma destas coisas toca o cerne daquilo contra o qual protesta. É a caminhada que é decisiva para combater a supremacia da técnica? É a caminhada um despertador garantido contra esta supremacia? É o exemplo de Rousseau mais do que um argumento de autoridade? Não nos parece.