A dado momento do debate entre Mariana Mortágua e Paulo Raimundo, o secretário-geral do PCP classificou o que ali estava a acontecer como uma “troca de opiniões”. E acabou por ser isso mesmo que aconteceu: apesar de os dois partidos disputarem eleitorado comum e de olharem um para o outro com bastante acrimónia, esta noite os dois líderes sentaram-se a conversar — praticamente sem interrupções de parte a parte — sobre um problema comum: a relação com o PS e a forma como podem, ou não, obrigá-lo a tomar medidas mais à esquerda.

Se o Bloco de Esquerda partiu desde cedo para esta campanha com um objetivo fechado — fazer acordo com o PS se a esquerda tiver maioria, tentando obrigar os socialistas desde já a falar sobre medidas concretas, até agora sem sucesso –, o PCP tem sido menos direto a falar sobre essa hipótese. Desta vez deixou, no entanto, uma porta mais aberta aos diálogos à esquerda (mesmo que não sejam em forma de acordo escrito), dizendo que a “condição” para obrigar o PS a tomar medidas positivas é “constituir uma maioria de esquerda”. 

Ou seja, desta vez, em vez de falar apenas no tradicional desejo de que a CDU seja reforçada em votos e mandatos, a que costuma somar a promessa de que não faltará ao que for “positivo”, Raimundo reforçou também em mais do que um momento que a “história” fala pelo PCP, referindo-se à formação da geringonça em 2015 (quando ajudaram a “tombar o tabuleiro”) — mais uma vez, desvalorizando a “forma” desses diálogos, uma vez que o PCP nunca quis que os acordos fossem necessariamente formais. Se o PCP conseguir ficar mais forte, irá trabalhar para obrigar o PS a adotar as suas soluções, prometeu.

Já Mortágua reiterou a sua argumentação em defesa de um acordo “claro” e transparente à esquerda, por uma razão simples: o Bloco de Esquerda acredita que essa é uma “condição de mobilização” do eleitorado. Ou seja, os eleitores de esquerda precisam de saber que a hipótese de existir uma nova geringonça é mesmo real e que os partidos podem “encontrar soluções como no passado” para terem motivação para ir votar — pelo que considerou o apelo ao voto útil do PS, que em 2022 tanto prejudicou os partidos à sua esquerda, “esfarrapado, espantoso e incompreensível”.

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Por isso, num ponto (essencial) ambos ficaram com o mesmo problema em mãos: como Raimundo resumia, as críticas ao PS são muitas, embora não possa dizer que é “igual ao PSD”; o que a esquerda acha é que quando o PS governa sozinho, como aconteceu nos últimos dois anos, fica mais solto e igual a si próprio — pelo que a esquerda precisa de o influenciar, coisa que só conseguirá fazer alcançando a tal maioria.

Quanto aos temas em debate, como seria de esperar, começaram por mostrar sobretudo concordâncias: apesar de uma ou outra nuances, nos temas “essenciais”, como dizia Raimundo, os partidos seguem uma linha semelhante — a Habitação foi o exemplo mais central, com ambos a dedicarem-se a criticar as propostas dos outros partidos, incluindo do PS por se recusar a atacar a “raiz” dos problemas e controlar os aumentos das rendas ou interferir (via Caixa Geral de Depósitos, na versão do Bloco) no valor dos juros.

Ficou para Mortágua o desafio, lançado pela moderadora, de identificar as áreas em que há, de facto, discordâncias, coisa que fez em tom cordial e com Raimundo a dizer estar “perfeitamente de acordo” com o resultado do exercício: falou da eutanásia (o BE foi um dos proponentes da legalização, o PCP vota contra mas percebe que é um tema “sensível”), da posição relativamente à invasão russa da Ucânia ou a regimes como o da China e a “cleptocracia” de Angola (e Raimundo assinalou que o PCP nada tem a ver com essas “negociatas”, o que Mortágua confirmou prontamente).

A líder bloquista acabaria a defender que a UE deve ter uma “voz própria” nos conflitos e que perdeu essa oportunidade para ser a promotora da paz para a Ucrânia, e Raimundo rematou: “Enquanto os EUA, UE, Ucrânia e Rússia não se sentarem à mesa não vai haver resolução.” Sobre uma eventual dissolução da NATO, ambos têm opiniões semelhantes — “temos a mesma Constituição”, rematou Mortágua, com um sorriso.

O diálogo mais revelador

Mariana Mortágua — O BE e o PCP têm um percurso de convergência em áreas essenciais. Fizemos um acordo em 2015 e fizemos parte de uma solução que foi a governação mais estável e que as pessoas guardam melhor memória. Precisamente pela força desses compromissos que foram então assumidos e temos um percurso de convergência em questões laborais, na habitação, como aqui falámos, com propostas próximas. Temos também muitas divergências que são conhecidas, temos uma divergência na lei da eutanásia, da morte assistida, por exemplo. O PCP foi contra essa lei. O BE defende o direito a que as pessoas possam escolher com a sua dignidade ou com a forma que acham que é a sua dignidade qual é a forma digna de morrer quando têm uma doença incurável e um sofrimento que elas próprias consideram que é intolerável e atroz e que o façam em plena segurança e com a proteção da lei. E temos também divergências em questões internacionais. Divergiu-nos uma avaliação sobre a invasão de Putin e a natureza do regime de Putin e da invasão à Ucrânia, divide-nos também considerações diferentes no campo internacional sobre a natureza dos regimes da China e de Angola, por exemplo, onde vigorou e mandou oligarquia, na verdade uma cleptocracia no caso angolano, que o BE denunciou ao longo de toda a sua história, e que usou Portugal como uma lavandaria de dinheiro que foi roubado ao povo de Angola por uma elite de generais e que entrou por aí a dentro do sistema bancário português.

Paulo Raimundo — Não acho que estamos a disputar, estamos a trocar opiniões, ideias programáticas, umas que convergem, outras que divergem e estamos a construir resultados eleitorais. Não punha a coisa nesses termos. Vamos sair aqui do debate e alguém vai dizer que houve um que ganhou e outro que perdeu, eu não acompanho essa linha de raciocínio. Sobre questões mais concretas, acho que convergimos em muita coisa e divergimos em muitas outras. Divergimos na forma como cada partido olha para o projeto europeu. Divergimos sobre esta ou aquela matéria. Nas questões concretas, certamente que nem Mariana Mortágua nem quem nos está a ouvir saberá que nós não temos nada a ver com as negociatas de Angola ou de Moçambique.

Mariana Mortágua — Nem sugeri isso.

Paulo Raimundo — A segunda questão, que é um questão mais delicada e mais profunda, é a questão da eutanásia. De facto esta é uma situação muito complexa, nós acompanhámos a sensibilidade da questão e as preocupações legítimas das pessoas, de todos nós sobre esta matéria. Entendemos que é uma situação muito complexa. É neste quadro que nós estamos a discuti-la, é nesta sociedade que estamos a discuti-la, não é em outra sociedade e que levanta um conjunto de dificuldades e problemas que podem ter efeitos perversos. Nós não parámos a nossa reflexão sobre o tema, até porque ela não teve desenvolvimento legislativo e vamos ter de voltar a ela. Não damos isso por encerrado, é uma questão fundamental. Aquilo que nós precisamos neste momento era de todos nos concentrarmos na questão que se coloca do ponto de vista internacional de como é que as forças da paz vão aguentar a paz perante este apelo permanente à guerra e permanente ao ódio. Coloca-se no caso da Ucrânia e no caso da Palestina, que nos temos cruzado várias vezes nessas ruas fora é nessa causa justíssima do povo palestiniano.