Já em 2005 António Homem Cardoso e Lourenço de Almeida haviam feito uma viagem deste tipo, mas a pé pelo caminho português até Santiago de Compostela, um livro impresso pela editora Lucerna, de Cascais. Desta feita, a viagem foi feita de comboio em toda a linha entre Vila Real de Santo António e Lagos, 140 km bem medidos com 28 estações e apeadeiros de premeio, numa decisão “sugerida pelo início das tão aguardadas obras de eletrificação e melhoramento da linha do Algarve” e pelo económico e ecológico desse modo de viajar, mas a verdade é que isso lhes trouxe limitações, tanto geográficas, pois não puderam incluir no roteiro, por exemplo, as extremas de Alcoutim e Sagres, como culturais, por não terem alcançado outros pontos do Algarve dignos de registo. Se a viagem é mais peregrinação em busca do Belo do que um passeio de devaneio ao acaso da sorte, a crónica é mais um diálogo que um monólogo, uma conversa culta, digamos assim, em que referências pessoais comparecem a par e passo, inevitavelmente, desdobrando os dois amigos nas muitas outras figuras que intimamente os compõem, inevitavelmente, e se lhes juntam na caminhada.

Larcher diz, ainda em Vila Real, que o “António é um romântico que ficaria muito bem num grupinho com o Byron, o Hugo, o Garrett e outros do mesmo quilate” (segunda crónica, p. 11). Ele próprio, pelo seu lado, leva debaixo do braço dois livros, Crónicas Algarvias de Manuel da Fonseca (1962; relançado pela Editorial Caminho em 1987) e Viagem a Portugal de José Saramago (1981) — para meu espanto e desgosto esqueceu-se completamente das páginas algarvias de Raul Brandão n’Os Pescadores, ou até daquelas de Maria Lamas n’As Mulheres do Meu País —, e ao longo do trajeto outros livros e sobretudo outros escritores entram em cena, algarvios quase todos, como João de Deus, António Ramos Rosa, João Lúcio, o inevitável Manuel Teixeira-Gomes (Portimão) e a talvez evitável, digo eu, Teresa Rita Lopes (Cacela Velha).

O peso leve porém intenso da velha História portuguesa ressalta, localidade após localidade, da escolha das imagens do antigo fotógrafo oficial da Família Real, a quem os símbolos nacionais e religiosos falam de forma muito particular, mas não esquece — e exatamente por isso — a grande odisseia humana que lhes corresponde e ocupa o espaço público em esculturas de todo o tipo, unindo o pescador em bronze da Fuzeta ao rei-menino em mármore em Lagos, o marquês de Pombal em Vila Real ao poeta-cauteleiro de Loulé, o passar do tempo nos relógios e sinos de igreja ao grande presépio serrano no Centro Cultural António Aleixo e aos oito dias da eternidade no enigma da casa de João Lúcio (p. 87). A cúpula do chalé do poeta e as armas régias no teto da igreja de Santo António de Lagos não estão assim tão distantes, como se podia supor. A vocação marítima dos algarvios é que está sempre presente, como traço distintivo do espírito do lugar (a primeira foto de dupla página do livro é a borda dum cais, com meia dúzia de gaivotas perfiladas; pp. 8-9), mas também a doçaria regional, expressão da criatividade popular com os produtos que a terra dá — amêndoa, alfarroba, figo —, em combinações de lamber os dedos e chorar por mais. Larcher não perde a oportunidade de brincar com o amigo: “ele é ainda mais guloso do que fotógrafo” (p. 92), o que lhe fica bem. Ambos parecem convergir na citação de Rolf Kuhn, que define cultura como “o esforço paciente — de séculos, de gerações antes de nós e depois de nós — para dar ao mundo esta espécie de carne que é a nossa alma” (p. 149).


Título: “Pelas Terras do Vento. Algarve de costa a costa”
Autores: Paulo Larcher e António Homem Cardoso
Editora: By the Book
Apoio: Fundo Cultural da Sociedade Portuguesa de Autores
Páginas: 192
Preço: 23,32 €

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Testemunhos de outras eras não escaparam a esta dupla de amigos em viagem e conversa, como o chalé de João Lúcio (em Marim, junto a Olhão), o palácio de Estói — onde Homem Cardoso descortinou um busto do poeta inglês John Milton e Larcher protestou a exorbitância dos preços da hotelaria —, mas também o café Aliança, em Faro, já entregue ao deus-dará, em que, de facto, não puderam entrar, e onde da última vez que lá estive, numa invulgar sala art déco sem clientes (como se, num ato de louca megalomania, a tivesse reservado só para mim), me pareceu um refúgio de civilização no meio do caos urbanístico que é a cidade de Faro, um tesouro perdido que outrora foi lugar de importantes tertúlias, como Paulo Larcher soube reconhecer ao referir-se a  Roberto Nobre, artista gráfico e dedicado crítico de arte. As páginas sobre a igreja de São Lourenço de Almancil e os seus azulejos, são das mais vibrantes deste livro, e um convite direto à nossa visita, com António Homem Cardoso a provar a excelência da sua arte na magnífica fotografia da p. 127.

Todavia — e ainda que esta conclusão possa ter surpreendido os próprios autores, tão dispostos a percorrer o Algarve de lés a lés por trilho ferroviário, como mobilidade antiga e de futuro, no contexto de uma sua modernização em curso —, a linha de Vila Real a Lagos, em grande parte do seu traçado, está desligada dos contextos urbanos que a tornariam mais útil e acessível. Logo em Monte Gordo, “andar dali até à vila é coisa para uma boa meia hora” (p. 21). De Vila Nova de Cacela até Cacela Velha, onde a Ria Formosa inicia os seus deslumbramentos, passa-se “uma hora a andar” (p. 26). “Conceição, embora servida por um excelente apeadeiro da ferrovia algarvia, funciona como um arrabalde de Cabanas” (p. 81). Tudo melhora em Tavira, Olhão e Faro (mais), mas piora desde ali ao término, que é metade do trajeto: “a linha orienta-se a Norte antes de infletir para Oeste, mas dá-se ao luxo de falhar cidades como Loulé!” (p. 92), a uma distância de meia dúzia de quilómetros (p. 103). “As estações e apeadeiros — com exceção de Algoz [e Portimão] — ficam sempre desencorajadoramente longe dos núcleos urbanos” e “são pouco úteis para os habitantes locais” (p. 135).

Também por isto nem sempre a visão dionisíaca, geralmente consentida, prevalece: “o Algarve inteiro é um paraíso que se perdeu” (p. 97); “esta região é o retrato de uma série de cataclismos não naturais, menos imprevisíveis que estes, mas mais intensamente destruidores” (p. 99). Albufeira será sempre, de facto, uma desolação, seja de verão seja de inverno, mas note-se por um instante na bela fotografia das pp. 146-47, em que a evocação escultórica da antiga labuta piscatória se antecipa à miudagem numa partida de futebol, tema de eleição de Augusto Cabrita, “fotógrafo humanista” e grande mestre e amigo de António Homem Cardoso, cujo centenário se celebra com uma nova exposição antológica no Barreiro, sua terra natal, e sou levado a pensar quanto da lição daquele persiste no olhar deste, mas não tenho resposta para isso, e ele o dirá melhor que ninguém.

Paulo Larcher dedica três crónicas a Portimão, quer dizer, ao “grande quadro da alma portimonense” (p. 159) — “A sardinha e as letras”, “A sardinha renascida” e “A matrioska” —, pese embora o facto de estar sozinho, sem “poder dispor — diz — das dicas que, habitualmente, entre duas fotografias, o Mestre Homem Cardoso vai debitando” e que então “lhe dariam tanto jeito…”. A indústria conserveira, e sobretudo o seu caso de museologia, e a figura do presidente da república que em dois anos apenas percebeu onde estava metido, ou onde o meteram, e logo se exilou em Marrocos, onde faleceu, são os grandes temas locais, à falta de outros. Talvez, além do trabalho canónico de Urbano Tavares Rodrigues, valesse a pena ler e citar, para estímulo contraditório, o ensaio de Maria Filomena Mónica sobre o autor de Agosto Azul e Maria Adelaide

Em Lagos, apesar das atribulações das viagens, foram ao encontro do museu dos escravos — “o que foi feito não pode ser desfeito mas pode e deve originar uma reflexão profunda, à luz dos valores atuais”, lê-se na p. 184 —, mas também passaram pelo navegador Gil Eanes esculpido com grande dignidade pelo açoriano Ernesto Canto da Maia, que no livro antecede, com forte intencionalidade, em páginas inteiras, o Dom Sebastião de João Cutileiro, numa praça que, como fica escrito, é o álfa e o ómega da nossa história moderna. “Puseram-nos lá juntos e lá continuam, o homem que nada tinha e tudo achou, como anfitrião do homem que tudo tinha e tudo perdeu. E nós com ele” (p. 190). Importa redescobrir o Algarve.