Este artigo foi originalmente publicado no 14.º número da

revista DDD – D de Delta.

Reportagem na Ilha Terceira, onde o que parecia quase impossível se tornou realidade.

A história do café nos Açores não é linear. Até chegar às lojas Delta The Coffee House Experience de Lisboa e do Porto, onde está à venda sob o nome The Impossible Coffee, o café açoriano venceu barreiras e rasgou horizontes.

Desconhece-se o momento exato em que foi introduzido no arquipélago, mas estima-se que a origem da cultura do café remonte ao final do século XVIII. Sabemo-lo devido às referências ao cultivo que se encontram em literatura da época, como na obra Escavações (1821), no folheto Ensaio sobre a Cultura Preferível para Substituir os Cereais na Ilha de S. Miguel, e os meios de a Promover (1840) ou na publicação periódica O Agricultor Micaelense (1844).

O cultivo era encarado como uma curiosidade, devia-se mais a propósitos ornamentais do que a uma lógica de comercialização, mas havia exceções. E essas tinham como epicentro a ilha Terceira, de onde vieram as 12 sacas de café que chegaram a São Miguel no verão de 1848, segundo a edição de julho de O Agricultor Micaelense. Em comparação, em maio tinham chegado 15 sacas de Pernambuco, no Brasil, então o principal exportador de café para os Açores.

Várias plantações surgiram na ilha na segunda metade do século XIX e princípio do século XX, tendo entretanto desaparecido. Nos anos 70, depois do 25 de Abril, os Serviços Oficiais de Agricultura lançaram uma campanha a incentivar o cultivo de café Arábica nas variedades Caturra e Yellow Bourbon, provenientes do Brasil, e que se deram bem neste clima subtropical. Contudo, a falta de conhecimento técnico e de equipamento adequado para a transformação e armazenamento depois da colheita condenaram a campanha ao insucesso.

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Na viragem do milénio, alguns técnicos do Serviço de Desenvolvimento Agrário da Terceira retomaram o plantio de café tendo como base as “plantas mãe” mais produtivas da ilha, e a seguir passaram-nas a agricultores e produtores interessados na matéria.

Mas, antes, os técnicos fizeram um levantamento exaustivo dos cafeeiros da ilha. “Ainda podemos encontrar alguns exemplares muito antigos na Terceira, com aproximadamente 80-90 anos de idade, e alguns já centenários. Foram referenciados 213 locais com cafeeiros de diferentes tipos, desde plantações novas, a quintas em produção e quintas abandonadas, jardins públicos, jardins particulares, etc”, explica Jorge Tiago Martins, um dos técnicos que começou a plantar café há mais de 20 anos.

Jorge cultivou café na ilha onde vive, a Terceira, mas todo o arquipélago tem potencial e produções em pequena escala para consumo ou que originaram marcas próprias. É o caso da Fajã dos Vimes, na ilha de São Jorge, onde as primeiras plantas de café chegaram do Brasil há cerca de 200 anos e onde as famílias Nunes têm mais de um hectare plantado nas traseiras da casa – são as plantas descendentes dessas que chegaram no início do século XIX. E da colheita anual nasceram marcas, destinada sobretudo a turistas.

De São Miguel chega o exemplo de Pedro Pimentel e Dina Fraga, casal que se lembrava desde sempre de ver plantas de café Caturra em São Miguel, porque as flores, lindas, são inesquecíveis. Depois de terem decidido apostar na produção de café, importaram sementes, procuraram um viveirista que os ensinasse a plantar cafeeiros e, em breve, vão ter 9 mil plantas a dar grão de café.

A semente pegou e, a partir de 2010, um pequeno grupo de produtores formou a Companhia Insulana de Cafés, organização com a finalidade de promover a cultura do café, que em 2015 deu lugar à Associação de Produtores Açorianos de Café – a APAC, que hoje conta com “70 associados em oito das nove ilhas”, segundo Luis Espínola, que preside à associação.

Nestes últimos anos, em conjunto com a APAC, o governo regional e o apoio de técnicos estrangeiros, a Delta Cafés efetuou estudos para perceber que espécies seriam mais adequadas ao clima e solo açorianos, verificando que existem seis variedades de café Arábica com potencial para serem produzidos no arquipélago.

“Temos investido na formação e qualificação dos cafeicultores dos Açores, levando hoje mais de 1200 horas de trabalho no terreno. Com isto, ao longo destes últimos anos, impactámos mais de 80 produtores em ações de capacitação e workshop”, conta o CEO da Delta Cafés, Rui Miguel Nabeiro. “Foi graças a eles que a produção de café voltou ao arquipélago e são muitos os que hoje apostam em pequenas produções de café.”

O lançamento pelo Grupo Nabeiro do The Impossible Coffee, um lote de café 100% dos Açores, representa o afirmar da qualidade do projeto. “O nosso café passa de ser vendido em lotes de pequenos produtores com marca própria para uma fase em que pode ser experimentado ao lado de outros cafés de altíssima qualidade”, diz Luís Espínola, presidente da APAC. “A parceria com a Delta Cafés, a APAC e o Governo Regional dos Açores é fundamental para que sejam dadas as ferramentas necessárias para que o café seja mais do que um sonho, uma realidade.”

“O mais especial é tornar possível o impossível”

5 perguntas a Rui Miguel Nabeiro

1. Apresentar um café cultivado nos açores tem algum significado especial?

O projeto em si é apaixonante, e o facto de estar nos Açores faz toda a diferença. Há um conjunto de fatores difícil de explicar, mas sente-se uma paixão enorme por sermos capazes de produzir café em Portugal, e, em particular, nos Açores, que é o único sítio na Europa onde isso é possível. É com muito orgulho que a Delta apresenta o primeiro café português.

2. É por esse motivo que o café se chama Impossible Coffee?

Sendo um dos maiores consumidores e onde a cultura do café está implementada há muito tempo, a Europa não produzia café por não haver condições climáticas. Foi por isso que lhe chamámos Impossible Coffee. Porque o mais especial é tornar possível o impossível.

3. Como é que a Delta se envolveu neste projeto?

Em 2018, a Delta juntou-se à International Coffee Partners, uma associação da qual fazem parte empresas familiares europeias no negócio do café e que tem o propósito de apoiar o desenvolvimento da produção em pequenos agricultores. Nessa altura, tivemos conhecimento de que se estava a tentar produzir café nos Açores. Foi aí que pensámos: ‘E porque não?’ Porque não tentar perceber se é possível dar este passo? A expectativa não era sermos nós os agricultores. O que queríamos, e queremos, é contagiar famílias e pequenos produtores a acreditarem que é possível investir no café e subsistir do seu cultivo.

4. Que condições reúne este arquipélago que não se encontrem no resto da Europa?

Os Açores têm um clima propício: muito húmido, com chuvas constantes e temperatura amena. A própria terra vulcânica, que pensaríamos que poderia dificultar a plantação, acaba por ter – sabemos hoje, ao fim de quatro anos de estudos – condições ótimas para a produção de pelo menos seis espécies de café. Aquilo que vamos ver mais à frente é se cumprimos com a expectativa. O que fizemos, em primeiro lugar, foi estudar para obter conhecimento. A seguir partilhámos esse conhecimento com o governo regional e com a APAC. Estamos, em conjunto, a transformar o presente para criar futuro para os cafeicultores dos Açores.

5. E como caracteriza o café dos Açores?

É um café de especialidade, com um sabor muito próprio e uma qualidade extremamente alta. Não vai haver grandes volumes, mas será, sobretudo, um café muito, muito bom.

The Impossible Coffee. O primeiro lote de café dos Açores está à venda nas lojas Delta The Coffee House Experience de Lisboa e Porto em embalagens de 250 gramas.

Na maternidade das plantas de café

Há 6240 plantas de seis variedades da espécie Arábica ao cuidado dos viveiros da Divisão de Agricultura do Serviço de Desenvolvimento Agrário da Terceira. Daqui são enviados cafeeiros para o restante arquipélago. É onde tudo acontece.

O levantamento mais recente contabilizou 12 mil plantas de café da espécie Arábica, nas variedades Caturra e Yellow Bourbon, na ilha Terceira. Destas, cerca de 600 tinham idades compreendidas entre os 10 e 30 anos, havendo 300 plantas com mais de 30 anos (aqui incluem-se algumas centenárias) e níveis de produção considerados excelentes. Árvores de café produtivas, o Serviço de Desenvolvimento Agrário da Terceira estima haver à volta de 4500, isto é, com idade superior a três anos – as restantes terão idade inferior.

Para que os produtores não desperdicem tempo e recursos com plantas  que acabam por não se desenvolver ou não produzir o que delas se espera, a Divisão de Agricultura do Serviço de Desenvolvimento Agrário da Terceira criou um viveiro de cafeeiros. Esta estrutura de apoio à produção de café é uma espécie de creche onde 6240 “bebés” – de seis variedades da espécie Arábica – se encontram ao cuidado de Jorge Azevedo, o engenheiro agrónomo responsável pelo projeto.

Deste viveiro na Terceira são enviadas todos os anos entre 4000 a 5000 plantas de café para serem cultivadas nas restantes ilhas do arquipélago. São “plantas mãe”, resultado de melhoramento genético às mãos da equipa de Jorge Azevedo, e que são acompanhadas de aconselhamento técnico, recolha de amostras do solo onde vão ser plantadas, bem como aconselhamento de fertilidade, de instalação e planeamento de novas plantações, maneio da cultura e tratamento a dar no pós-colheita.

“Estamos a desenvolver seis novas variedades de Arábica e a compará-las com as duas testemunhas”, diz Jorge, referindo-se à Caturra e ao Yellow Bourbon, as duas variedades que dominam a paisagem cafeeira dos Açores desde o século XVIII. A ideia é perceber se elas se dão bem neste clima e terroir. “Observamos a sua adaptação agronómica: a resistência ao frio, à secura, se a maturação é homogénea, a resistência a doenças e se têm uma produtividade superior.” Se a produção de café nos Açores já corre bem, a expectativa é que o futuro seja ainda mais risonho.

Jorge Tiago Martins, o engenheiro

Jorge Tiago Martins é engenheiro agrónomo e pertence à equipa de técnicos do Serviço de Desenvolvimento Agrário da Terceira, que há mais de 20 anos teve a ideia de recuperar o cultivo de café. Lembraram-se de o fazer porque se tratava de uma cultura que já existia na ilha, só que a produção estava muito desorganizada. “As pessoas produziam café para consumo próprio ou mantinham o plantio para ornamentar o terreno, porque são árvores com um verde muito vistoso, muito vivo”, explica.

“Agora a produção está mais organizada”, considera. “Há produtores que têm pequenas marcas próprias, e depois há quem produza mas não tenha interesse em criar marcas”, diz Jorge, que pertence a este grupo. O engenheiro agrónomo começa a colheita a partir de finais de maio, início de junho. A produção é toda em agricultura biológica, com as plantas de café em coabitação com outras árvores frutíferas típicas de climas subtropicais, como citrinos, abacates, goiaba e maracujá.

Jorge Tiago Martins

Parte do que apanha permanece na sua quinta nos arrabaldes de Angra do Heroísmo (“aqui nesta zona encontras várias quintas com plantas de café centenárias”, revela), onde será consumido ao pequeno-almoço nos meses seguintes; o resto é vendido a outro produtor da ilha que, esse sim, tendo uma marca, depois o comercializa – essa é a parte do processo que não lhe interessa, de todo.

Acho que o caminho do café nos Açores é o de café de especialidade. Em volume não podemos competir com países como o Brasil.

“O café não gosta de temperaturas abaixo dos 5 ou 6 graus centígrados, e isso não temos nas ilhas”, diz Jorge. “Não basta ter verões quentes, é preciso que as mínimas fiquem acima dos 10 graus, e isso não acontece no continente.” Este clima não é exclusivo dos Açores, daí que também a Madeira e as ilhas Canárias tenham plantas de café.

Cada árvore adulta de café Arábica das que Jorge tem espalhadas no terreno ao redor da sua casa – e que estão misturadas com outras árvores de fruto e escondidas do vento por trás de sebes – produz entre 900 e 1200 gramas de grão verde, que é o que está pronto para ser torrado. “Isso é cinco vezes menos do que o fruto”, avisa, antes de demonstrar porque é que tem de colher cinco quilos de bagos de café para conseguir um quilo de café verde. “Depois de apanharmos o fruto maduro, deixamo-lo secar, descascamo-lo até à polpa como se fosse uma cereja e pegamos na semente, que é o grão.”

Jorge considera que a maior organização se nota também no apoio técnico no cultivo e no pós-colheita. “É fundamental”, garante. “É um processo que pode inviabilizar um bom café. O café pode ser bom, de boas plantas e com boa produção, mas um mau maneio depois da colheita – desde a secagem à despolpa, da torra à armazenagem – pode estragar o café todo.” Isto significa, nas contas deste engenheiro agrónomo, que “cerca de 80% das condições para se fazer um bom café estão ligadas ao pós-colheita”.

Com boas condições de armazenamento, o café verde aguenta-se até um ano. “Num bom armazém, com temperatura e humidade controlada, sem fontes de contaminação, o café pode aguentar-se muito tempo.” Quando é torrado, aí é que tem de ser comercializado o mais depressa possível para não perder a frescura. “É diferente do negócio da fruta fresca”, diz – e, caso dúvidas houvesse, sim, o café é um fruto e a sua planta, o cafeeiro, uma árvore frutífera.

José Gabriel Ferreira, o americano

O café começou há 12 anos como uma brincadeira para este ex-emigrante nos Estados Unidos. “Um hobby”, como explica, numa pronúncia americana imaculada, José Gabriel Ferreira. “Num dia em que fui a São Jorge, um amigo meu que tinha árvores de café com 70 e 80 anos perguntou-me porque é que eu não levava café de volta para a Terceira.” José Gabriel respondeu-lhe que pouco percebia do assunto, ao que amigo retorquiu que o ensinava.

José Gabriel Ferreira

Quando voltou a casa, plantou as árvores. Umas pegaram, outras não. “Se soubesse o que sei hoje, teria plantado mais e agora teria uma produção maior. Só este ano produzi 80 quilos, o que é pouco. Não é o suficiente para poder vender para fora”, lamenta.

“Tenho 10 alqueires de terra [cerca de hectare e meio]. Estou a usar seis para café e tenho 1500 árvores plantadas.” As mais novas têm dois anos. Pelas suas contas, quando todas estiverem a produzir, vai ter à volta de uma tonelada e meia para colher a cada ano. “Aí já terei uma produção valente.”

A plantação fica em São Bento, na zona sul da Terceira, um pouco acima de Angra do Heroísmo, que da sua propriedade se vê esplendorosa e com o mar ao fundo. “Estou dentro da cidade e, ao mesmo tempo, estou fora. Café dos Açores com melhor vista do que esta não há.”

No primeiro ano, o café produz pouco. Só ao fim de três anos começa a laborar em velocidade cruzeiro. Somam-se mais três anos à experiência para verificar a qualidade desse laborar, bem como a quantidade daí resultante. “Se uma árvore não produz de 15 quilos para cima, já não é uma árvore boa. Porque ela trabalha num rácio de cinco para um”, diz José Gabriel Ferreira, de 63 anos. “Apanhas cinco quilos de fruto para ter um quilo de café. E depois de ir à torra perde mais 20%. Imagina: apanhas 15 quilos de fruta de café e ficas com 2,4 quilos de café limpo. Tens de ter uma árvore grande.”

Como tantos açorianos fizeram antes dele, José emigrou para os Estados Unidos. Foi para a cidade de San José, na Califórnia, com 20 anos, em 1980, para construir casas de banho, e regressou à ilha passados 18 anos. “Fiz o tempo da reforma e voltei para a minha terra. Hoje, este terreno já me dá trabalho suficiente para me manter ocupado o dia todo.”

Dedica-se à agricultura a tempo inteiro e de há dois anos para cá começou a vender café torrado a turistas. Café que torra numa micro-torrefatora na sede da apac, com capacidade para um quilo. Antes produzia apenas para consumo próprio. Em boa verdade, com 80 quilos de produção total no último ano, não há muito para vender. O cenário vai mudar em breve, e, espera José Gabriel Ferreira, com a ajuda da Delta. “Porquê? Porque, no futuro, a Delta vai ser boa para os Açores. Quando estivermos a produzir 10 ou 15 toneladas, a quem é que vamos vender?”

José nunca fala de uma só ilha. Refere-se sempre ao conjunto das nove, ao arquipélago. “Nos Açores, estamos agora a começar com produções de seis novas variedades de café. Estamos a ver se percebemos qual é a melhor para as ilhas. Sabemos que o Yellow Bourbon e o Caturra se dão bem cá.”

O pior inimigo do café, esse, é o vento. Por isso, José – bem como os restantes produtores de café – colocam sebes altas, com o objetivo de cortar o vento para proteger os cafeeiros. “Há muitas árvores que não crescem mais por causa das rajadas de vento. A árvore de que a gente gosta é baixa, mas tem ramos abrangentes: essas são as boas. Nunca vão crescer muito em altura, mas vão ser boas árvores de produção.” Quando a planta atinge a altura de um homem de estatura média, José quebra-lhe a crista para que comece a crescer para os lados e não para cima.