Ao procurar informação sobre Sala de Professores, o mais recente filme do realizador germano-turco Ilker Çatak, é fácil esbarrar na ideia de escola enquanto simulação do mundo inteiro. A ideia tem alguma recorrência, por exemplo, vimo-la em parte em Recreio, de Laura Wandel, e noutros filmes com salas de aulas, onde as dinâmicas entre professores e alunos desenham um microcosmos do mundo lá fora: “Muito depressa percebemos que quando contamos uma história que se passa numa escola, estamos a fazer um filme sobre a sociedade e estes professores acabam por ser como políticos.”, contou-nos Ilker Çatak quando falámos com ele durante uns minutos via Zoom. Sala de Professores está nomeado para o Óscar de Melhor Filme Internacional e, desde a estreia há um ano no Festival de Berlim, tem acumulado prémios e nomeações. Foi o grande vencedor dos Deutscher Filmpreis, os prémios de cinema alemão em maio passado.
As primeiras apresentações de Sala de Professores descrevem-no como um thriller que se passa numa escola. Embora a música potencie em muito a sensação de thriller, essa pode ser uma catalogação enganadora. Comece-se pelas origens. Ilker e Johannes Duncker (co-argumentista) são amigos de infância e um dia na escola alemã em Istambul “os professores entram na sala, pedem para meter as nossas carteiras na mesa e pedem às raparigas para sair”.
Continua: “Estavam à procura de dois ladrões na nossa sala, sabíamos quem eram, mas não queríamos denunciá-los. Descobriram-nos mas, na altura, nunca questionámos a situação. Achámos tudo muito duvidoso. Não havia grupos de WhatsApp, e-mail ou redes sociais que pudessem escalar este tipo de coisa ou, se quiser, averiguar os nossos direitos enquanto alunos.” Esta é a situação que gera a intriga em Sala de Professores: um docente, Thomas (Michael Klammer), tem sido alvo de roubos e resolve usar esta estratégia para descobrir o ladrão. As culpas recaem num aluno turco.
[o trailer de “A Sala de Professores”:]
Segue-se uma reunião entre a diretora da escola, o miúdo, os pais e Carla (Leonie Benesch), a professora protagonista desta história. Por esta altura, já fomos bombardeados com ideias como a “a escola tem uma política de tolerância zero” e outras afinidades. “É preciso ter consciência de que temos direitos e que podemos dizer ‘não’, por vezes só temos de dizer não. Só assim se podem vencer estes conceitos de ‘lei & ordem’ ou ‘tolerância zero’. O filme é sobre democracia e, se não tomarmos ação, estas tendências farão o seu caminho e tornar-se-ão totalitárias. Primeiro, são autoritárias e, a dada altura, tornam-se totalitárias. Se vivemos em democracia é porque, a dado momento, alguém disse não.”
Esta cena, que marca todo o filme, é ainda comum nas escolas alemãs, diz-nos o realizador: “Enquanto escrevíamos o argumento, falámos com vários educadores só para confirmarem o que estávamos a fazer e diziam que este tipo de ações fazem parte do dia-a-dia. E isso não devia acontecer. Eles estão a dizer aos miúdos que lhes entreguem a privacidade, que vão tomar conta dela, que se não tens nada a esconder, então não tens com que te preocupar. Isto é política.”
Reforçamos: isto é o começo do filme e, vale a pena dizê-lo, não é nada comparado com o que se vai passar a seguir. Esta cena é o catalisador para Carla decidir que tem de fazer qualquer coisa, ao ver a injustiça que foi praticada com os seus alunos. Carla repara que alguém anda a roubar da caixa de doações da máquina de café e decide tomar uma atitude: enquanto vai dar uma aula, deixa o casaco na sala de professores com dinheiro na carta e o computador com a câmara a filmar.
Até aqui Carla é uma personagem por quem estamos apaixonados. Parece uma ótima professora, os miúdos adoram-na. E, na situação atrás referida, parecia ser a única professora com bom-senso. Mas ao tomar esta decisão, faz algo dúbio: invade a privacidade dos outros, independentemente do que acontecerá a seguir. Neste momento, o espectador até pode estar um pouco ao lado de Carla, empatizar com aquela ideia de “justiça pelas próprias mãos”, mas depressa tudo isso passar para um outro nível, a uma situação que ficará fora de controlo.
“Há aquele ditado inglês que diz ‘o caminho do inferno está feito de boas intenções’. Acho que há grande verdade nisso. Porque as boas intenções nem sempre têm bons resultados. É bom ter boas intenções, mas é preciso pensar nas consequências. Não se podes tomar uma ação e depois pensar ‘oh, mas eu só queria fazer o bem’. As coisas não funcionam assim, o mundo não funciona assim.” O realizador refere-se assim a este ato de Carla, que motiva uma instabilidade em toda a escola — com os alunos, com os professores e com ela própria.
À medida que o filme vai avançando, uma palavra ganha importância: justificações. As mesmas que também usam os media com personagem, numa clara tentativa de crítica ao jornalismo e à gestão dos meios de comunicação: “Há uma pressão em criar cliques, atenção, vender, por isso é que histórias complexas são reduzidas a uma manchete. As pessoas já não leem o artigo completo, mesmo que o artigo seja complexo e seja justo. O que as pessoas leem é a manchete e o texto de entrada. Isto é um problema, sobretudo com o défice de atenção atual. E os jornais alimentam-se disso.”
Sala de Professores cria um problema e não oferece solução, quase ninguém sai bem na fotografia, apesar de todos, em algum momento, terem razão. Mas a razão serve de pouco quando não se age para lá das boas intenções. Quem sai bem na fotografia? A resposta está no final do filme e em quem diz “não”.