Há uma cena de Parque Mayer, o penúltimo filme de António-Pedro Vasconcelos (que morreu esta terça-feira, 5 de março, aos 84 anos), em que umas das personagens explica a outra, uma atriz, no palco de um teatro vazio, o prazer que é vê-lo cheio de pessoas a aplaudir, mostrando que gostaram do que lhes foi apresentado. Foi sempre a pensar nesse grande público – que geralmente foge do cinema português como o diabo da cruz — na sua satisfação, com competência, qualidade e valor comercial, que António-Pedro Vasconcelos fez os seus filmes. E vários deles foram sucessos de bilheteira, o que representa uma proeza num cinema que continua a não ter uma indústria que produza filmes mainstream apresentáveis, e em quantidade e qualidade, que funcionem minimamente no mercado. Aquilo o que o falecido José Fonseca e Costa chamava “o pão com manteiga” do cinema nacional.

Tendo passado da crítica para a realização, como outros realizadores da sua geração, e como os cineastas da Nova Vaga francesa que tanto admirava (juntamente com os grandes nomes da Hollywood clássica, de Ford a Kazan, de Hawks a Preminger) e que procurou emular no início da carreira, António-Pedro Vasconcelos destacou-se no cinema nacional pelo gosto e pela preocupação em contar bem boas histórias, para entreter os espectadores mas também para lhes dizer alguma coisa sobre o país em que viviam e a forma como o faziam. Os seus filmes, independentemente de serem mais ou menos conseguidos, revelam o cuidado e a atenção que ele sempre deu, a todos os aspetos da sua elaboração, do argumento à plausibilidade geral, do realismo dos ambientes ao trabalho com os atores, que escolhia e dirigia com todo o zelo, dos principais aos secundários. Eis os melhores filmes de António-Pedro Vasconcelos.

Morreu o realizador António-Pedro Vasconcelos, “defensor do cinema de grande público”

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“Oxalá” (1981) – Ainda muito influenciado pela Nova Vaga em todos os aspetos, da organização formal à caracterização das personagens, à tónica geracional e às preocupações do realizador, bem como ao recurso à improvisação, Oxalá é o sucessor natural da primeira longa-metragem de ficção de Vasconcelos, Perdido por Cem… (1973), feita antes do 25 de Abril. O realizador reflete, através da personagem principal, um jovem português que se exilou em Paris no antigo regime, e hesita em regressar ou não a Portugal, ao longo de várias visitas, entre 1974 e 1978, em que contacta familiares e amigos, sobre o estado do país, ainda afetado pelas convulsões político-sociais que se seguiram à revolução.

“O Lugar do Morto” (1984) – Esta fita policial de forte influência americana, sobre um jornalista fascinado por uma mulher misteriosa — e que se vai revelar fatal como mandam as regras do género — foi um enorme e raríssimo sucesso comercial e de crítica, surgindo a contrapelo da época, pelo tema, pela capacidade narrativa e intensidade dramática, pela inserção da história num quotidiano lisboeta e jornalístico verosímil e reconhecível pelo público, e pela recusa quer de um “autorismo” estéril e umbiguista que então grassava no cinema português, quer de um cinema de militância exausto. As escolhas de Pedro Oliveira (jornalista de profissão e sem experiência de representação) e Ana Zanatti, ambos então muito conhecidos da televisão, para os papéis principais, foram certeiras.

“Jaime” (1999) – Filmado no Porto e seus arredores, Jaime é centrado no adolescente do título, que vive com a mãe, recentemente separada do pai, que perdeu o emprego após lhe terem roubado a moto. Jaime (Saúl Fonseca) começa a trabalhar sem que os pais saibam, para poder ganhar dinheiro e comprar uma nova moto e, na sua ingenuidade juvenil, voltar a unir a família, mas envolve-se com gente pouco recomendável.  O tema do trabalho infantil também faz parte do enredo de Jaime, mas António-Pedro Vasconcelos não se quer ficar por fazer um filme de mera preocupação político-social, pois o que lhe interessa sobretudo é a história humana, a personagem do jovem Jaime e a forma como ele se relaciona com o mundo dos adultos em seu redor, que o podem perder ou salvar.

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“Os Imortais” (2003) – Nicolau Breyner era um dos atores de eleição de António-Pedro Vasconcelos, que lhe deu, neste filme, um dos papéis mais memoráveis da sua carreira. Ele é Joaquim Malarranha, um inspetor da Polícia Judiciária à beira da reforma, personagem castiça e benfiquista ferrenho (tal como o realizador), que vai investigar um arrojado roubo a um banco, levado a cabo por quatro veteranos da guerra do Ultramar, que todos os anos se juntam para almoçar, se auto-intitulam “Os Imortais” e fizeram o assalto por mero tédio e desafio pessoal. As memórias do conflito africano e as marcas que deixou nos que lá combateram, e a inadaptação dos ex-soldados ao “novo Portugal”, passam pela história de Os Imortais, um filme de polícias e ladrões à portuguesa com inspiração hollywoodesca, em cujo excelente elenco encontramos ainda Emmanuelle Seigner, Alexandra Lencastre, Joaquim de Almeida, Filipe Duarte ou Rui Unas.

“Call-Girl” ( 2007) – Quando um dia alguém for à procura de um filme português que fale de corrupção, um assunto que todos os dias é referido no espaço mediático e anda sempre nas bocas do mundo, mas não encontra expressão nem na literatura, nem no cinema nacional, terá obrigatoriamente que ir buscar este Call Girl como raríssimo e conseguidíssimo exemplo, onde o tema vem muito bem embrulhado numa intriga policial. Nicolau Breyner, em mais uma ótima composição, é um ingénuo autarca de província que vem a Lisboa e é seduzido por Maria (uma sensualíssima Soraia Chaves), a call-girl do título, para que autorize a construção de um empreendimento turístico de luxo na sua região. José Raposo e Ivo Canelas são os dois agentes da Judiciária, de gerações e feitios muito diferentes, que começam a investigar o caso. A personagem de Virgílio Castelo, um ministro arrogante e afetado que surge apenas por alguns minutos, é um bom exemplo do valor que o cineasta dava às figuras de segundo plano e aos atores que selecionava para as viver.

“Km 224” (2022) – O último filme de António-Pedro Vasconcelos ficará como um dos melhores que assinou. Mário (José Fidalgo) e Cláudia (Ana Varela) eram um casal feliz. Quando tiveram o primeiro filho, passaram a ser uma família feliz. Mas ao terem o segundo, as coisas começaram a correr mal, desentenderam-se e acabaram por se separar, deixando os dois filhos, ainda pequenos, a andarem do pai para a mãe e contribuindo mais um número para a estatística das famílias desfeitas. Cláudia iniciou um processo de divórcio litigioso, para ficar com a guarda dos rapazes. Km 224 é uma daquelas histórias que muito poucos seriam capazes contar no nosso cinema como António-Pedro Vasconcelos, tirada ao real quotidiano, filmada numa cidade familiar e reconhecível, povoada por personagens que cruzamos nas ruas e podemos até conhecer, plenamente verosímil nos retratos humanos, nas situações dramáticas enunciadas, nas emoções em jogo, nas pequenas peripécias e na forma como as pessoas se relacionam, se tratam e falam umas com as outras. Um filme português como devia haver mais. Muitos mais.