(Texto atualizado)
“Da análise de toda a informação reunida (…), [resultam] padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES”. O relatório da Comissão Independente do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra confirma ao longo de 114 páginas a existência de indícios de assédio sexual, ainda que os autores refiram não ser possível assegurar a veracidade de todas as situações comunicadas à comissão (leia o documento na íntegra). Boaventura Sousa Santos diz estar pessoalmente “mais tranquilo hoje do que estava há 1 ano”, mas mais preocupado enquanto fundador do CES. Atual diretor do Centro de Estudos Sociais assegurou na tarde desta quarta-feira que vai enviar todas as informações para o Ministério Público.
A equipa foi constituída para analisar denúncias que surgiram no ano passado com a publicação de um artigo no livro “Sexual Misconduct in Academia” (Conduta Sexual Imprópria na Academia), publicado pela editora britânica Routledge, da autoria de três investigadoras (Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom), com descrições de episódios de assédio sexual numa instituição de ensino superior. Ainda que o artigo “As paredes falaram quando mais ninguém podia” não mencionasse nomes, entretanto soube-se que se tratava do Centro de Estudos Sociais (CES), de Coimbra.
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Em nenhum momento, aliás, as autoras identificam o nome real de cada personagem (são referidas três personagens-chave que assediavam ou pactuavam com os assédios: o professor-estrela, o aprendiz e a vigilante), o nome do centro de estudos, nem tampouco o país onde tudo aconteceu.
Ao fim de vários meses de recolha de informação e audições, o relatório conhecido esta quarta-feira dá conta de que os testemunhos e denúncias foram na sua maioria “extensos”, “com informação precisa e detalhada, situados no espaço e no tempo, descrevendo em pormenor reuniões de trabalho, conversas, situações de convívio e outras, apresentando, na sua maioria, consistência entre si e coerência interna”. Também os denunciados apresentaram “relatos na sua maioria consistentes e em algumas situações coerentes entre si”. Os números apresentados mostram que houve 14 pessoas denunciadas, por 32 denunciantes. A maioria das supostas vítimas (78%) são mulheres — mais de 50% dos que apresentaram testemunho são “estudantes de doutoramento” e “investigadores pós-doutoramento”. Outro dado importante é que mais de um terço dos denunciantes são oriundos do continente americano (35%), mais do que os portugueses (31%).
Apurou-se que havia o sentimento generalizado de que este centro de estudos era uma instituição de referência internacional que “‘abria muitas portas’ a quem o frequentava e trabalhava com determinadas pessoas”. E isso tem grande relevância, porque “a estrutura hierárquica do CES gerou profundos desequilíbrios de poder e desconfiança entre estudantes em relação às pessoas que ocupavam cargos diretivos nos seus órgãos ao longo dos anos”. Além disso, conclui o relatório, “a falta de instrumentos e orientações precisas poderá ter potenciado abusos de poder e a sua repetição gerou padrões de conduta inadequados no contexto académico”.
Quanto aos instrumentos implementados pelo CES mais recentemente, em 2020, para lidar com situações de assédio e abuso (Código de Conduta, Provedoria), é referido que “os mesmos não incluem sanções quanto aos incumprimentos das condutas prescritas”, não sendo eficazes para os casos denunciados, porque estes foram anteriores a estas medidas.
Direções do CES foram tendo indícios, mas atuaram de forma “leviana”
É ainda feita uma forte crítica ao facto de nunca ninguém se ter importado com estas suspeitas, sobretudo quando em 2017 começaram a surgir algumas pichagens em Coimbra com denúncias — que aliás estiveram na origem do nome do artigo “As paredes falaram quando mais ninguém podia”.
“As várias direções do CES, ao longo dos anos, pese embora da nossa análise tivessem indícios de situações menos próprias nas relações entre membros da sua comunidade, subvalorizaram-nas e, com isso, podem ter contribuído para a eventual perpetuação das mesmas. Em concreto, a forma como lidaram com as ‘pichagens’, iniciadas em 2017, ignorando e não atuando administrativa e judicialmente, indicia uma maneira leviana de atuação sobre alegados comportamentos que deveriam, por parte de um órgão executivo, ser levados muito a sério, nomeadamente, através de uma investigação interna”, sublinham os membros da comissão.
O documento esclarece que se verificaram igualmente “indícios de negligência na forma como certas questões foram tratadas por parte de algumas pessoas que ocupavam cargos nos órgãos sociais do CES, bem como de pessoas que estavam hierarquicamente em posições díspares (por exemplo, na relação orientador/a – orientando/a)”.
Outro dos pontos destacados é a informalidade das relações e locais escolhidos para reuniões e outros eventos: “A existência de reuniões em espaços privados entre pessoas em posições hierárquicas diferentes e dependentes não se coaduna com uma boa e responsável prática académica. A ‘confusão’, tanto por parte das pessoas denunciantes como por parte das pessoas denunciadas, entre as esferas profissional e privada, indicia que propiciou situações de conflito de interesse, de assédio e de abuso de poder”.
Por fim um destaque para a vulnerabilidade de algumas vítimas — a comissão concluiu que se “identificaram situações (por exemplo, comunicação em língua não materna, hábitos culturais diferentes) de que estudantes e investigadores/as vindos do estrangeiro constituíram os grupos mais vulneráveis a possíveis abusos de poder e assédio”.
CES pede desculpas às vítimas por “ações individuais” e por “falhas institucionais”
No capítulo das recomendações, o relatório sugere ainda ser “primordial regulamentar, implementar e promover uma política institucional de prevenção e de combate ao assédio e abuso”.
“Para o desenvolvimento e implementação dessa política há órgãos e mecanismos estruturais que são essenciais fortalecer. Mais ainda, recomendamos medidas específicas para mapeamento, prevenção e intervenção sobre queixas e práticas de assédio e abuso”, referem os membros da comissão que assinam o documento, Catarina Isabel Reis Neves, Cristina Ayoub Riche, Jorge António Ribeiro Pereira, Maria Eduarda Romão Baginha, Proença de Carvalho, Michaela Antonín Malaníková.
Ao mesmo tempo em que foi publicado este relatório final, a direção do CES apresentou publicamente “um pedido de desculpas” às “vítimas de comportamentos de assédio ou abuso no contexto de atividades do CES” pela “experiência pela qual passaram, pelo sofrimento pessoal que daí terá resultado, e pelo silêncio que tiveram de enfrentar no seio do CES”.
“Se é certo que as situações reportadas resultaram de ações individuais, sobre as quais iremos agir, não deixam, também, de resultar de falhas institucionais que, na ausência de mecanismos adequados para a prevenção do assédio, permitiram condições para formas de abuso de poder”, apontou a direção, num comunicado divulgado no site do CES.
Na conferência de imprensa realizada na tarde desta quarta-feira, e transmitida na íntegra pelo Notícias de Coimbra, Tiago Santos Pereira, diretor do CES, fez saber que a informação da comissão que foi recebida pelo centro de estudos será encaminhada para o Ministério Público, para que seja alvo de um inquérito, incluindo os nomes dos denunciados. Questionado sobre a ausência de nomes no relatório final, como o de Boaventura Sousa Santos, esclareceu que “foi acordado” que este documento público não indicaria identidades, nem mesmo dos denunciados, para garantir o anonimato de todos envolvidos.
Quanto à possibilidade de processos disciplinares com vista à suspensão, acrescentou que o CES recebeu informação relativa às pessoas denunciadas: “Não é certo que haja toda a informação necessária para se tomar uma iniciativa desse género, mas estamos a fazer uma análise jurídica”. Lembrou ainda que Boaventura Sousa Santos e Bruno Sena Martins se auto suspenderam.
Boaventura Sousa Santos diz estar “pessoalmente mais tranquilo do que há 1 ano”
“Verificou-se que as versões apresentadas por várias pessoas denunciantes e por várias pessoas denunciadas foram em muitas situações incompatíveis entre si, tornando-se, nessas situações, impraticável aferir evidências das mesmas”. Foi com esta frase, tirada do relatório e relativa apenas a uma parte das situações analisadas pela comissão independente, que Boaventura Sousa Santos começou a sua reação, enviada por escrito às redações.
O sociólogo começou por referir que “pessoalmente” está “mais tranquilo hoje do que estava há 1 ano”. “Nunca esperei uma absolvição das suspeitas que sobre mim pairaram porque, efetivamente, nunca fui confrontado com acusações concretas de abuso de poder ou de assédio — como, aliás, o próprio documento agora atesta”, defende, adiantando: “Mas esperei que houvesse um esclarecimento que pusesse fim ao clima de suspeição, coisa que não aconteceu e que a Direção do CES optou, para já, por não garantir”.
A contrastar com o lado pessoal, Boaventura, assume que, “como fundador do CES”, está “hoje mais preocupado”: “A Comissão Independente fez, em meses, uma radiografia de 48 anos de atividade da Instituição, baseada em 32 denúncias. O relatório centrou-se em questões de abuso de poder, nas quais não me revejo, até porque fui, em grande medida, responsável pela descentralização de poder”, continua o sociólogo.
Alegando que “o relatório refere padrões de conduta, ou seja, situações que foram sendo praticadas ao longo dos anos, mas que não foram concretizadas no tempo e no espaço, praticadas por pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES”, o fundador do centro de estudos recorda “a esse propósito que o CES tem, em termos de órgãos, Direção, Conselho Fiscal, Assembleia-geral, Comissão de Ética, Conselho Científico e Provedoria”. De seguida conclui: “Não faço parte de nenhum deles desde 2010. O relatório também refere que, apesar de os homens se terem mantido mais tempo nos órgãos de gestão, a maior parte daqueles cargos foi ocupada por mulheres. Essa realidade pode explicar que dos 14 denunciados, 9 sejam mulheres”.
Apesar de fazer esta análise, reforça nunca ter tido informação sobre estes casos: “Quanto a mim, não tive conhecimento dessas situações”.
E mais, diz estar de acordo que o apuramento dos factos não se fique por este relatório: “Seja na esfera judicial ou disciplinar, espero que a Direção do CES dê seguimento a qualquer indício de infração – como comunicou que faria – e que, pela minha apreciação do relatório e no me que diz respeito, não existe”.
“Acredito que as mais de 600 páginas de prova que juntei ao processo tenham contribuído para que nada de objetivo contra mim tenha sido concluído. Espero que, apesar das limitações que revelou, este processo sirva de exemplo para futuro. Quero acreditar que abre um caminho de esperança para um melhor desempenho, a todos os níveis, tanto do CES como de todas as instituições de investigação”, remata.
A reação inicial de Boaventura Sousa Santos e do CES às denúncias
Ainda que o capítulo do livro que espoletou tudo não identificasse ninguém, assim que este foi tornado público, ao DN, Boaventura Sousa Santos acabou por dizer reconhecer-se na descrição do professor-estrela, ainda que rejeitasse as acusações. E ameaçou que iria avançar com um processo-crime por difamação contra as três mulheres — como o Observador noticiou na altura dificilmente neste caso estaria em causa o crime de difamação, dado que o artigo não identificava ninguém.
Depois das primeiras notícias, houve outras alegadas vítimas que acabaram por fazer denúncias. No total, foram 32 as denunciantes.
O assistente de Boaventura Sousa Santos, Bruno Sena Martins, seria outra das personagens mencionadas no artigo (o Aprendiz) e era descrito como o “braço direito intelectual do professor e o seu sucessor”, que recebia os doutorados estrangeiros, estudantes e outros jovens investigadores.
Dias após a publicação do artigo, a direção e a presidência do Conselho Científico do CES anunciaram que ambos tinham sido suspensos “de todos os cargos que ocupavam” na instituição, “até ao apuramento de conclusões” da comissão. O CES demarcou-se de todas as acusações e das “posições assumidas publicamente por Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins, nomeadamente no que respeita à intenção de avançar judicialmente contra as autoras”.
Agora, as conclusões do relatório, que nunca menciona o nome de Boaventura Sousa Santos, nem dos restantes membros do CES denunciados, são calaras: “Da análise de toda a informação reunida, bem como das versões entre as pessoas denunciantes e pessoas denunciadas que foram compatíveis entre si, indiciam padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES”.