Dias depois da divulgação do relatório da Comissão Independente do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, que confirmou a existência de indícios de assédio sexual, as mulheres que denunciaram os casos divulgaram uma carta em que elogiam o conteúdo do relatório final, de 114 páginas, considerando que o CES “virou a página do negacionismo do assédio e do abuso de poder”. As denúncias analisadas no relatório, dizem ainda, foram relatadas “com rigor, detalhe e evidências”. “Porque contámos as histórias das nossas vidas e o que enfrentámos sistematicamente, por anos.”
Na 6.ª carta do coletivo de vítimas, um documento de 17 páginas onde pela primeira vez surgem os nomes das 13 subscritoras é, no entanto, pedido que se vá mais longe. Que haja consequências práticas para Boaventura Sousa Santos — um processo para retirar o fundador do quadro de investigadores do CES e restantes visados nas denúncias.
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Vítimas saem pela primeira vez do anonimato
As mulheres dizem entender que o CES tem agora “a oportunidade de conduzir um processo de verdade, justiça, reparação e não-repetição que pode permitir reinventar-se como instituição comprometida com a transformação da realidade social e, assim, dar exemplos para outras instituições que também se estão reinventando frente às frequentes denúncias de violência e práticas abusivas”.
E é com esse objetivo que decidiram dar agora os seus nomes. “Na esperança de que nossos esforços vão repercutir não só numa mudança cultural e política, mas institucional (legislações dos diferentes países, estatutos das universidades, regimentos, etc.), apresentamos abaixo nossos nomes, levantando nosso anonimato e nos comprometendo publicamente com esta agenda”.
A carta é assinada por Aline Mendonça dos Santos, Carla Paiva, Élida Lauris, Eva Garcia-Chueca, Gabriela de Freitas Figueiredo Rocha, Julia Suárez-Krabbe, Isabella Gonçalves (deputada estadual brasileira), Mariana Cabello Campuzano, Moira Millán (ativista indígena mapuche), Sara Araújo, Teresa Cunha, Miye Nadya Tom e Lieselotte Viaene (estas últimas são duas das três autoras do artigo “As paredes falaram quando mais ninguém podia”, que no ano passado deu visibilidade a estas denúncias). Algumas das denunciantes são investigadoras do próprio Centro de Estudos Sociais.
Na carta, o coletivo de mulheres lembra também que, no relatório final e embora não sejam mencionados nomes, foi reconhecido que existia um grupo de agressores e que, por isso, o relatório deve seguir para o Ministério Público. “Sob nenhuma hipótese pode negar-se que Boaventura de Sousa Santos estava à frente desse grupo”, sublinha, adiantando ainda que, durante o último ano, houve várias tentativas de condicionamento das vítimas da parte das “pessoas agressoras”.
“Em especial, repudiamos a tentativa de silenciamento da ativista indígena Moira Millán”, argumenta. O coletivo ressalva que a argentina já tinha denunciado o “assédio sexual que sofreu por parte de Boaventura de Sousa Santos (…) muito antes da explosão mediática do caso”, mas, dizem, a sua “voz só se fez ouvir quando se somou às demais denunciantes”.
Moira Millán chegou a dar uma entrevista ao Observador – cerca de duas semanas após a publicação do capítulo –, em que confessou que o ex-diretor do CES tentou abusar dela. “Não ia deixar que me violasse. Não ia deixar que abusasse de mim”, salientou na altura.
O grupo de mulheres destaca que, após as denúncias da ativista, ao “trauma do assédio sexual, juntou-se um processo de silenciamento e re-traumatização, com ataques à sua reputação”. “Os ataques continuados do agressor e o silenciamento são reveladores da dimensão racista e colonial da violência“, acrescenta.
Das 13 mulheres que decidiram dar a cara, Moira Millán não terá sido a única a ser pressionada para ficar calada. O documento refere ainda o nome de Isabella Gonçalves, dizendo que “foi submetida à continuação do assédio através das tentativas de contacto por parte de Boaventura de Sousa Santos, com uma proposta de conciliação, que, na prática, se revelou uma tentativa autoritária de promover o seu silenciamento“.
Além dela, menciona Lieselotte Viaene (uma das autoras do texto), destacando que foi “duramente difamada na comunicação social, com a divulgação de informações inverídicas e classificações estereotipadas negativas”, nomeadamente “referências infundadas a uma alegada vingança por ter sido expulsa do CES como resultado de um processo disciplinar”.
O coletivo critica que esta informação, que diz ter sido “ampla e internacionalmente disseminada pelo seu agressor, Boaventura de Sousa Santos”, nunca tenha sido “retificada pelo CES”. “Apenas se limitou a confirmar a uma jornalista portuguesa que o processo disciplinar contra Lieselotte foi arquivado em decorrência do fim do seu contrato de trabalho com o Centro”, enalteceu.
Miye Nadya Tom, outra das autoras do capítulo do livro é também referida no ponto do documento que expõe a alegada “cultura de retaliação e difamação no CES contra as mulheres que tentaram denunciar”. A investigadora terá sofrido “ameaças de processos legais por parte do seu agressor”, que, pode ler-se, “disseminou, ainda, informações difamatórias acerca do seu caráter e integridade”.
“Recebeu e-mails de intimidação do próprio CES com vista a silenciá-la e viu uma mensagem privada e profundamente pessoal que escreveu, ser publicada, à sua revelia, nas redes sociais por uma das pessoas denunciadas por encobrimento da sua denúncia”, acusa o coletivo, referindo-se a uma publicação feita pela investigadora Maria Paula Meneses – referida como “Sentinela”, no capítulo –, no Facebook, em que partilhava um e-mail enviado por Miye Nadya Tom.
“Comissão independente adotou “rigor metodológico”
“Saudamos o rigor metodológico adotado pela CI, evidente na forma como assumiu os limites na validação dos testemunhos, reconhecendo a existência de situações em que não foi possível atestar cabalmente se ocorreram ou não certos atos denunciados”, aponta o coletivo das vítimas, numa nota enviada esta quarta-feira ao Observador. No entanto, estas mulheres também questionam sobre o futuro que será dado ao relatório e pedem que o mesmo não seja “conduzido ao esquecimento”.
As vítimas dizem confiar no trabalho da Comissão Independente do CES e que estavam certas de que, “se um grupo de pessoas isentas” tivesse contacto com os testemunhos e os analisassem “com imparcialidade e rigor, inevitavelmente, identificaria evidências e indícios suficientemente conclusivos sobre a existência de um ecossistema de assédio e abuso de poder no CES“. As situações de assédio reportadas eram, segundo as vítimas, sustentadas “por uma hierarquia fechada num círculo de poder restrito, que se habituou a práticas de encobrimento e silenciamento das denúncias”.
“As propostas, mais ou menos subtis, de relações íntimas resultaram em retaliações sobre as nossas carreiras ao serem firmemente recusadas. As tentativas de controlo da nossa vida sexual e dos nossos planos de vida, incluindo a decisão de sermos mães, eram extremamente invasivas e perturbadoras”, descrevem.
Coletivo exige saída de Boaventura Sousa Santos e medidas de reparação individual
Ao CES exigem a abertura imediata de “procedimento administrativo para submeter à Assembleia Geral do CES a retirada de Boaventura de Sousa Santos do quadro de investigadores do CES”. E defendem que se encerre “a auto-suspensão de Boaventura de Sousa Santos” e se determine “a sua suspensão como decisão da Direção CES”. E não se ficam por aqui, pedem igualmente “processos disciplinares contra Bruno Sena Martins e Maria Paula Meneses”. Além disso, querem que se dê “início à abertura de procedimento administrativo para submeter à Assembleia Geral do Centro de Estudos Sociais a retirada de ambos do quadro de investigadores da instituição. Proceder à suspensão imediata de ambos”.
Estas são apenas algumas das medidas de reparação, numa lista onde também pedem ainda ao CES que organize, “a curto prazo, encontros da Direção do CES com as vítimas que se mostrarem disponíveis, para discutir medidas de reparação individuais”; e à Justiça portuguesa que arquive “imediatamente qualquer processo de difamação em curso contra denunciantes do padrão de assédio e abuso de poder do Centro de Estudos Sociais”. Recorde-se que Boaventura Sousa Santos chegou a ameaçar com um processo desta natureza.
O coletivo, representado pela advogada brasileira Daniela Felix, recomenda ainda medidas de não repetição, para garantir que tudo o que dizem ter vivido não se repita. Além de sugestões ao CES e à Universidade de Coimbra, é pedido ao Parlamento e aos partidos políticos que revejam, “propondo mudanças legislativas, as normas relativas à prescrição e denúncia que atualmente impedem que os crimes sexuais, as práticas de assédio sexual, moral e abuso poder sejam levadas à justiça e que as pessoas responsáveis sejam responsabilizadas”.
A equipa da Comissão Independente do CES foi constituída para analisar denúncias que surgiram no ano passado com a publicação de um artigo no livro “Sexual Misconduct in Academia” (Conduta Sexual Imprópria na Academia), publicado pela editora britânica Routledge, da autoria de três investigadoras (Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom), com descrições de episódios de assédio sexual numa instituição de ensino superior. Ainda que o artigo “As paredes falaram quando mais ninguém podia” não mencionasse nomes, entretanto soube-se que se tratava do Centro de Estudos Sociais (CES), de Coimbra.
E é precisamente sobre o livro que deu origem às primeiras denúncias que as vítimas falam também no comunicado divulgado esta quarta-feira. E é aqui que surgem as críticas ao CES que, dizem, “falhou ao não se posicionar firmemente contra a difamação das denunciantes e contra outros processos de revitimização e desumanização, como a partilha pública de correspondência privada como forma de retaliação das denunciantes”. “Ficou ainda aquém do esperado quando se remeteu ao silêncio perante um ataque à liberdade académica, com o cancelamento, na sequência de manobras jurídicas, de um livro internacional que analisou precisamente o assédio nos ambientes e processos de produção científica.”