É, pelo menos para já, o final de um processo que já se arrastava há meses. A pintura Descida da Cruz, de Domingos Sequeira (1768-1837), foi comprada por Avelino Pedro Pinto, através da Fundação Livraria Lello. A informação oficial foi confirmada esta quarta-feira, dia 20 de março, data marcada para a assinatura do memorando de entendimento entre o Estado português e os novos proprietários da obra, definindo os termos do depósito da pintura e da sua exposição num museu nacional, que teve lugar no Palácio Nacional da Ajuda. O quadro chegou na segunda-feira,, 18 de março, a Portugal, naquela que é a sua primeira aparição pública desde 1996, altura em que esteve pela última vez exposto ao público no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Vai ficar em depósito no Mosteiro de Leça do Balio, onde é exposta publicamente a 18 de maio. Depois, iniciará uma itinerância por diferentes museus do país. A primeira paragem da pintura integra-se num plano que ainda está a ser estudado e que será somente anunciado nessa data.
De acordo com o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, será a partir deste memorando que se vai desenvolver, posteriormente, um entendimento sobre onde vai estar a pintura em exibição. “Todos os quadros de todos os museus no mundo têm como princípio essa rotatividade e os empréstimos fazem parte da vida quotidiana dos museus. Portanto, naturalmente que isso será sempre não só possível, como desejável”, sintetizou em declarações à imprensa, sem adiantar, no entanto, o tempo de validade do acordo agora estabelecido.
O processo que desencadeou a assinatura deste memorando deve-se a uma ação do empresário Avelino Pedro Pinto, que traz de volta a Portugal a obra-prima que saiu do país no final do ano passado debaixo de grande polémica, em consequência do que o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva classificou ser uma “lamentável falha dos serviços” da então Direção-Geral do Património Cultural (DGPC). Recorde-se que a informação relativa à compra da pintura, na feira de arte e antiguidades de Maastricht, por parte de uma “entidade privada nacional”, já tinha sido avançada pela Museus e Monumentos de Portugal (MMP), num comunicado enviado às redações na passada semana.
Por seu lado, Rita Marques, presidente da Fundação Lello, mostrou-se satisfeita com o desfecho do processo que permite o regresso da obra a Portugal. “A Descida da Cruz é mais do que uma obra-prima; é um símbolo da nossa herança e identidade. Trazer esta obra de volta para Portugal e disponibilizá-la ao público é um privilégio e uma responsabilidade que assumimos com grande honra”, disse a presidente da fundação.
A responsável salientou que o presente memorando vai ao encontro da missão da nova entidade, criada em janeiro deste ano, e que quer contribuir para “uma sociedade mais inclusiva e culturalmente rica”, através da fruição e do pensamento crítico. “Este memorando estabelece a necessidade de estudarmos a obra e garantirmos que o museu ou os museus que venham a ser selecionados para a que a mesma seja colocada à fruição pública sejam objetos de análise e esse é um trabalho que vamos iniciar desde já”, sustenta.
A ex-secretária de Estado do Turismo não avança, porém, se existem conversações por parte da Lello sobre a aquisição das duas restantes obras da série na qual se inclui a pintura Descida da Cruz, ainda na posse dos herdeiros, ou se a fundação pretende criar uma coleção de arte no futuro. “Queremos estar envolvidos e atentos quanto se trata de património identitário nacional. Neste momento, a fundação, sendo tão jovem, tem a sua concentração plena no Mosteiro de Leça do Balio e é aí que queremos depositar as nossas atividades mais prementes, a começar precisamente no dia 18 com a exibição da obra e com a sua transferência para um museu, celebrando dessa forma o Dia Internacional dos Museus. Não temos para já retas ou balizas definidas [relativamente a novas aquisições] e vamos gerindo o património e as prioridades da fundação de forma ágil e criativa”, completou.
Segundo informações reveladas no decurso desta assinatura, sabe-se que a transação foi acordada a 10 de março, já ao final do dia. Os valores da transação não foram confirmados. Antes da compra ter sido efetivada, o preço anunciado rondava os 1,2 milhões de euros, montante que, para efeitos de seguro, constava do pedido de expedição da pintura submetido no final do ano passado, e que permitiu a sua polémica saída do país. O Estado, sublinhe-se, ofereceu 850 mil euros pela obra, proposta que foi recusada.
“A aquisição foi concretizada por uma entidade privada nacional, em concertação com a MMP e visando, desde a primeira hora, o regresso da obra ao país, correspondendo assim ao desejo enunciado pelos seus proprietários”, pode ler-se no comunicado, que remeteu para um “momento próximo” a revelação dos detalhes do acordo e a identidade do comprador.
Sobre este aspeto, o Presidente do Conselho de Administração da Museus e Monumentos de Portugal, Pedro Sobrado, realça que mesmo perante o “impasse negocial”, a proposta do Estado foi a mais alta de sempre, ainda que tenha sido rejeitada. “Um privado pode ir mais longe”, realçou, deixando a garantia de que por parte da nova entidade que gere o património haverá sempre diálogo entre público e privado, com vista a “ações complementares, como a que hoje aqui celebramos”.
A saída da obra de Portugal está envolta em polémica desde o final do ano passado, quando a então Direção-Geral do Património Cultural (entidade entretanto extinta) decidiu autorizar a saída do país, contrariando pareceres de especialistas. Os proprietários portugueses entregaram a pintura para venda no final do ano, depois recebida uma autorização de saída de Portugal, justificada pela “inexistência de qualquer ónus jurídico”.
No decurso desta ação, especialistas da área do património escreveram uma carta aberta à tutela manifestando repúdio pela condução do processo. Num documento assinado por 12 especialistas em museus e património e enviada ao Ministério da Cultura, exprimia-se a indignação pela autorização da saída do país da pintura e pedia-se “todos os esforços” para a sua aquisição.
Por outro lado, surgiram igualmente vozes contra a aquisição do quadro numa situação de leilão. O presidente da Associação Portuguesa de Museologia (APOM), João Neto, mostrou-se contra a aquisição pública da pintura, num contexto em que o Estado se encontra “refém de interesses especulativos”. “A obra é importante e seria bom que ficasse em Portugal, mas não deve ser adquirida nestas condições, em que o Estado se encontra refém, pressionado por interesses comerciais especulativos”, considerou o responsável, contactado pela agência Lusa.
O que acontece agora à pintura
A Descida da Cruz faz parte de um conjunto de quatro pinturas de temática religiosa que Domingos Sequeira executou por volta de 1827-28 em Roma, cidade onde, depois de ter passado por Paris, escolheu exilar-se e onde viria a morrer. A saber, junta-se a este as pinturas: Ascensão, Juízo Final e Adoração dos Magos, esta última já na posse do Museu Nacional de Arte Antiga, aquisição através da campanha pública “Vamos por o Sequeira no lugar certo”, que atingiu o valor necessário três dias antes do previsto, 600 mil euros, graças à contribuição de 35 mil euros da Fundação da Casa de Bragança e Fundação Aga Khan, que doou 200 mil euros.
A série tem sido apresentada como testamento artístico do pintor – por nela estar condensado todo o seu percurso, recheado de obras públicas e de encomendas privadas –, mas também tudo o que viveu. Devido ao seu talento, Domingos Sequeira conseguiu proteção aristocrática e uma bolsa para se aperfeiçoar na cidade italiana, onde privou com vários mestres e conquistou diversos prémios académicos. O seu trabalho situa-se entre o Classicismo e o Romantismo, de um modo similar ao espanhol Francisco de Goya (1746-1828).
O requerimento para “exportação temporária” e “eventual venda” da obra A Descida da Cruz, de Domingos Sequeira, na posse do descendente do duque de Palmela Alexandre de Souza e Holstein, tinha como destino a Galeria Colnaghi, de Madrid, pelo prazo de um ano. Tal como a Descida da Cruz até muito recentemente, as outras duas – Ascensão e Juízo Final – estão ainda nas mãos de descendentes do seu dono original, o primeiro duque de Palmela.
Na altura da saída da pintura a óleo, o diretor do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), Joaquim Caetano, tinha emitido um parecer negativo a este pedido de venda, defendendo a necessidade de se iniciar “de imediato, o processo de classificação da pintura como Bem de Interesse Nacional, impedindo a sua saída de território nacional”. Desde que o anúncio do regresso foi feito que se gerou uma especulação em torno da identidade do novo proprietário. Admitida a itinerância da peça pelo país e pelo estrangeiro com empréstimos a instituições internacionais, fica a faltar o processo de classificação da obra, o que pode impedir no futuro uma nova saída de Portugal.