O livro “Memórias minhas”, de Manuel Alegre, é uma obra em que o histórico socialista recorda sete décadas da sua voz em defesa da liberdade, contra os absolutismos políticos, em especial contra a ditadura de Salazar.
Manuel Alegre vai apresentar publicamente o seu mais recente livro, “Memórias minhas”, no próximo dia 15, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, numa sessão que contará com intervenções dos antigos ministros Jaime Gama e Guilherme d’Oliveira Martins, e de Isabel Soares, filha do primeiro líder do PS e antigo Presidente da República Mário Soares.
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“Perguntam-me quase sempre porque é que, sendo poeta, me envolvi na política. Respondo: Por isso mesmo”, esclarece neste seu livro de memórias, que é mais detalhado sobre a sua vida antes do 25 de Abril de 1974 do que em relação ao período posterior à estabilização da democracia em Portugal.
Conta, por exemplo, como lhe saíram da “alma” alguns dos seus mais famosos poemas, como a “Trova do vento que passa”.
Em 1964, na Praça da República, em Coimbra, regressado da guerra colonial em Angola, estava a ser “perseguido por dois pides” enquanto caminhava com Adriano Correia de Oliveira. Saiu-lhe então “uma coisa instintiva”, que lhe “veio das tripas”:
“Mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão / há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não”.
Chegou a casa e escreveu o poema “de rajada”.
Em “Memórias minhas”, recua ao início do século XIX para contar que o seu trisavô, Francisco da Silva Melo Soares, futuro visconde do Barreiro, esteve envolvido numa falhada conspiração contra o regime absolutista, tendo depois conseguido escapar para o Brasil. O irmão do seu trisavô, de nome Clemente, foi apanhado pelos miguelistas e decapitado no Porto.
“Tenho tentado ser fiel a esta herança. Talvez ela ajude a compreender melhor a minha oposição a todos os absolutismos e a todas as formas de ditadura”, considera o presidente honorário do PS.
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Natural de Águeda, no distrito de Aveiro, atualmente com 87 anos, Manuel Alegre destacou-se na prática da natação durante a sua juventude e viveu um ano em Lisboa num período em que os seus pais estiveram separados.
“Tomava o elétrico para o Campo Grande, comprava um bilhete e ia ver os Cinco Violinos do Sporting no velho Estádio do Lumiar. Eu era da Académica, tinha simpatia pelo Benfica, mas pelo puro prazer do futebol gostava de ver jogar aquela equipa”, conta.
Começou a “escrevinhar” uns versos quando estava no quarto ano do liceu, numa altura em que se mudou para o Porto, já com os seus pais juntos novamente. Ganhou um concurso de jogos florais com um soneto de amor, “tão intenso”, que o padre, professor de religião e moral, achou conveniente adverti-lo: “O excesso de amor não deixa lugar para o divino”.
Ainda na década de 50, chegou a Coimbra para os últimos anos do liceu, antes de ingressar na Universidade. “Não é sonho, estou aqui, estou a vê-los, estou em Coimbra, esta é a minha cidade, a minha Académica”.
Aluno mediano de Direito, não gostava das aulas. Entrou no TEUC (Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra). “Entretanto, houve um dia que mudou as nossas vidas: a chegada de Humberto Delgado a Coimbra a 31 de maio de 1958. Alguns de nós chorámos de emoção”.
Filiou-se no PCP em 1961. José António da Ponte Fernandes, o “Buda”, como era conhecido, foi ter consigo com um ar misterioso e disse-lhe que tinha de entrar para o PCP. “Respondi-lhe que não queria ser membro de partido nenhum”.
“Já és”, disse ele com um ar muito encavacado.
“Essa agora? Não sei de nada”. “Já és”, repetia. “Já és e não é possível recuar”. O controleiro era então Silva Marques, futuro líder parlamentar do PSD.
Manuel Alegre cumpriu serviço militar nos Açores e a seguir foi mobilizado para Angola, em julho de 1962.
“Da primeira vez que fiquei em Nambuangongo, dormi no quarto do António Arnaut, que ostentava na parede uma frase de Fidel Castro e outra de João XXIII. O comandante queria que ele apagasse a de Fidel, mas o Arnaut respondeu: Não posso, senão tenho de apagar a outra e não vou fazer isso ao Papa”.
A frase de Fidel era “nem liberdade sem pão, nem pão sem liberdade”. Alegre diz ter conversado longamente com Arnaut sobre o sentido dessa frase. “E creio que foi a primeira vez que falámos de socialismo em liberdade, conceito que o PS viria a assumir em 1974”.
Em Angola, foi preso em 17 de abril de 1963. “A pior recordação que me ficou da estadia na cela C da prisão da PIDE em Luanda é a dos gritos dos presos africanos torturados à noite. Ainda hoje me atormentam”, diz.
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Manuel Alegre regressou a Lisboa em novembro de 1963. Seguiu-se uma breve passagem por Coimbra e o exílio de uma década em Argel, onde teve encontros com Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Álvaro Cunhal, entre outros. “Ninguém regressa nunca de um longo exílio. Falta a parte de nós que ficou por lá. E a que pelo mundo se repartiu”, escreve no seu livro.
No final da década de 60, abandonou o PCP. “Fiquei à espera que o PCP condenasse a invasão da Checoslováquia, mas o que veio foi a justificação e a aprovação. Algo se quebrou então dentro de mim”. Cita Piteira Santos: “Sei o que é marxismo e sei o que é leninismo. Marxismo traço leninismo é uma invenção de Estaline”.
Manuel Alegre aderiu ao PS só no fim de 1974. No congresso do PS, de dezembro de 1974, Mário Soares estava em risco de ser derrotado internamente por Manuel Serra. Manuel Alegre discursou em defesa do modelo de sociedade defendido por Soares, “a sala levantou-se e tudo mudou”.
António Guterres, um jovem de bigode liso, foi ter com ele e disse-lhe: “Isso é que é, entrar para o partido na véspera e ganhar o congresso no dia seguinte”.
Já como dirigente do PS, Alegre recorda o seu segundo grande combate político, na primeira linha da preparação “de gigantescos comícios” no Estádio das Antas, no Porto, e na Alameda, em Lisboa, contra o PREC (Processo Revolucionário em Curso).
Destaca como pior lembrança a passagem pelo I governo constitucional de Mário Soares como secretário de Estado para a Comunicação Social, numa conjuntura de crise económica. “Passei a ser o rosto e a voz do fim de festa”.
Sobre o primeiro governo de Soares, conta um episódio pouco conhecido.
“Mário Soares tinha recebido Álvaro Cunhal, por volta das sete da tarde, a entrevista prolongava-se, nunca mais acabava, ninguém tinham coragem de interromper. Abri a porta e deparei com os dois sentados à frente da televisão. Estavam a ver, regalados, Gabriela, cravo e canela, a telenovela que foi em si mesma uma revolução cultural”.