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O retrato de Filipe IV na Gulbenkian: a história, a glória e a sombra de uma obra-prima de Velázquez

Este artigo tem mais de 6 meses

Pintado em plena guerra contra a Catalunha, depois adquirido por Henry Frick, industrial do aço com uma sinistra história de abuso de poder, o "Retrato de D.Filipe IV", de Velázquez chega a Lisboa.

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O retrato de Filipe IV de Espanha foi pintado em 1644 por Diego Velázquez e pertence, desde 1911, à coleção Frick

Universal Images Group via Getty

O retrato de Filipe IV de Espanha foi pintado em 1644 por Diego Velázquez e pertence, desde 1911, à coleção Frick

Universal Images Group via Getty

Do imperador Augusto que patrocinou a Eneida, de Virgílio, ao mecenato dos Medici a Michelangelo, dos Sforza a Leonardo da Vinci, do Imperador Rudolfo II a Arcimboldo, até Henry Clay Frick ou à família Sackler, muitos são os homens e mulheres cuja riqueza, poder e dinheiro ajudou a criar ou a preservar a grande arte, não obstante terem uma história por vezes tenebrosa de assassinatos, guerras, abusos de poder ou corrupções várias. E, se tantas vezes os mestres antigos trabalharam sob a proteção de tiranos, hoje, a preservação e musealização das suas obras, que nos dão a ver o melhor da alma humana, não deixa de nos mostrar que a beleza comporta sempre o Bem e o Mal.

O quadro do grande mestre do século d’ouro espanhol, Diego Velázquez, que retrata o soberano de Castela (e de Portugal, até 1640) numa incursão para esmagar a insurreição catalã, que está a partir desta quinta-feira na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, emprestado pela Frick Collection, partilha também uma história feita de grandeza e horror.

A obra-prima é uma das muitas em que o genial pintor sevilhano de ascendência portuguesa retrata o rei D. Filipe IV, para quem trabalhou desde 1623, e integra o programa Obra Visitante, que a fundação leva a cabo desde 2022. Uma visita que está recheada de um simbolismo tentador desde logo porque esta imagem visava substituir o próprio monarca na sua ausência. Assim o retrato é um sofisticado exercício de projeção simbólica, que procura emanar todas as características que o rei queria dar a ver: força, coragem nas roupas de soldado que enverga, mas também a fúria guerreira que o tornava “legítimo herdeiro dos seus antepassados (…) e uma figura paterna, humilde e piedosa”, como escreve Pablo Perez D’Ors, no catálogo desta mostra. Pelo que podemos dizer que é o regresso a Portugal de D. Pedro III, depois da reconquista da independência portuguesa, que em 1640, o afastou de terras lusas. E que se este quadro visa representar um rei glorioso, por cá não podemos deixar de ver também o rei que foi derrotado.

Auto-retrato de Diego Velázquez

“Pessoalmente, o que mais me fascina nesta obra é a forma como um retrato Velázquez consegue captar a personalidade e a intimidade do rei. Não é um quadro formal, mas íntimo, que quer mostrar o rei não como o autor de uma derrota sobre os catalães, antes como um interventor da vontade divina. Uma obra fundamental na história da arte e que influenciou profundamente os Impressionistas”, diz ao Observador o diretor do Museu Calouste Gulbenkian, António Filipe Pimentel.

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Os anos 40 do século XVII foram particularmente negros para este monarca, que depois da perda de Portugal, tem de lidar com tentativas de independência da Catalunha, na época ajudada pelos franceses. A isto há que juntar um período catastrófico nas finanças reais, que faz com que o impressionante fato de soldado de lustroso tecido vermelho com detalhes em prata, com o qual foi eternizado por Velázquez, só tenha sido possível com a ajuda de um empréstimo monetário, como detalha Pablo D’Ors. De resto, o rei era inexperiente em guerra de depois da perda de Portugal era necessário que o povo continuasse a acreditar nele. Isso faz com que seja o primeiro monarca espanhol, desde Carlos V, a ir para a frente de batalha como soldado.

A realização deste quadro foi minuciosamente planeada com o pintor, desde a posição do corpo à forma como foi, meses mais tarde, mostrado, pela primeira vez, em Madrid, na missa de celebração da vitória sobre Lérida (Lheida), na igreja de San Martin, onde a cabeça o rei, virada para esquerda, faz com que este esteja a olhar para a virgem negra de Monserrat, exposta nessa sala beneditina.

Retrato de Filipe IV, de Castela, pintado em Fraga, na Catalunha, por Diego Velázquez, 1644

Michael Bodycomb

O Retrato de Filipe IV não é apenas um quadro, é uma tentativa de fazer do rei uma figura ubíqua, onde a imagem deve gerar o mesmo espanto e comoção que a presença corpórea do monarca. Velázquez vai na comitiva do rei e pinta na retaguarda dos campos de batalha, na aldeia de Fraga. Entre junho e julho e agosto de 1644, é construído um telhado e uma janela sobre uma ruína, que funcionarão como atelier. O rei posa em três sessões e a tinta vermelha é lenta a secar. Apesar de tudo, o quadro é feito num tempo recorde, tendo em conta que o pintor sevilhano não gostava de trabalhar à pressa. Em agosto, quando a guerra estava praticamente ganha, o quadro foi levado para Madrid, numa viagem que demorou uma semana, e a visão do rei vestido de soldado, calção justo vermelho bordado a prata, terá causado grande comoção nas gentes, embora o traje tenha levado um ano a pagar.

Curiosamente, o quadro desapareceu de circulação pouco depois desta missa, não sendo sequer incluído nos inventários reais até 1748, quando o rei Fernando VI o oferece a seu irmão, o duque de Parma. E de entre os muitos quadros que Velázquez pintou do soberano, o mais famoso será mesmo As Meninas, no qual o rosto do rei surge como um mero reflexo no espelho. Apesar de gostar muito deste pintor, Calouste Gulbenkian, não conseguirá adquirir nenhuma obra do pintor espanhol até 1919. Quando o Retrato de Filipe IV foi leiloado, em 1911, e comprado pelo industrial do ferro e do aço, Henry Clay Frick, por 475 mil dólares, a quantia foi de tal forma astronómica que deixou o mundo da arte em choque. Em 1919, Gulbenkian adquire o Retrato de Mariana de Áustria, que depois oferecerá ao Museu Nacional de Arte Antiga. Da coleção do empresário arménio fazem parte ainda uma obra com 50 gravuras de Velázquez e a monografia de R.A Stevenson, The Art of Velázquez, um dos mais importantes escritos sobre este artista.

Depois de ter estado quase mais de um século longe da Península Ibérica, o retrato esteve exposto no Prado, em Madrid, em 2023 e está agora em Lisboa, até 9 de setembro. A pintura ainda hoje integra a coleção Frick que, neste momento, leva a cabo obras para ampliação do espaço, e é um dos museus mais amados pelos americanos. O acervo da Frick centra-se em mestres antigos europeus e, nas suas instalações, em Nova Iorque, agrega obras de Vermeer, Holbein, Bellini, Rembrant, Van Dyck, Gainsborough, Veronese ou Fragonard.

Henry Clay Frick, de homem “mais odiado da América” a amável colecionador de arte

É sabido que Henry C. Frick teria um grande amor por este retrato do rei espanhol, saído das mãos de Velázquez, chegando mesmo a fazer-se fotografar junto a ele, na sua mansão, em Nova Iorque, onde segura o charuto de forma idêntica à que o rei segura o septro. O rosto barbudo e sereno não faz adivinhar que ficou na história dos Direitos Laborais Americanos como “o homem mais odiado da América”, por durante décadas ser manifestamente contra o direito à greve e, em 5 de julho de 1892, ter dirigido o que ficou conhecido como “o massacre de Homestead“, na Pennsylvania.

Retrato de D. Mariana de Áustria por Diego Velázquez, c. 1650, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa

Os trabalhadores da fábrica de Frick fizeram greve e bloquearam a entrada dos outros empregados na fábrica, enquanto faziam piquetes de vigilância. Durante a noite, cerca de 300 guardas avançaram a partir do rio e encurralaram os trabalhadores em greve, matando dez deles e ferindo outros 70. Frick recusou-se sempre a falar com o representante dos trabalhadores e ameaçou ainda expulsá-los de suas casas caso houvesse nova greve. Durante este período Frick sofreu ainda uma tentativa de assassinato, mas escapou ileso aos tiros do revólver do anarquista Alexander Berkman.

Quando morreu, em 1919, o empresário e mecenas, tinha transformado em arte a maior parte da sua fortuna, mas também tinha contribuído para várias universidades americanas e a construção de museus. A sua mansão, que era simultaneamente casa e galeria de arte, só foi aberta ao público depois da sua morte e a coleção foi continuada pela filha que fez muitas aquisições de peso. Mas se Frick soube ser um grande colecionador, sobretudo de arte europeia, a sua fortuna e poder estiveram ainda ligados a mais um episódio de tragédia e impunidade que foram as cheias de Johnstown, na Pennsylvania, em 1889, onde morreram mais de 2 mil pessoas.

Henry Clay Frick junto ao seu Velázquez, pintado por Gerald Kelly, na West Gallery, em 1925

Em 1880, Frick e vários amigos ilustres decidiram adquirir os terrenos e a barragem de Johnstown, para criarem um clube privado de pesca e caça. Uma das obras feitas, por iniciativa de Frick, foi um lago artificial para o qual foi preciso escavar bastante o terreno junto à barragem, criando um desnível perigoso. Em 1889, a falta de manutenção da barragem e o desnível provocado pelas obras resultaram em cheias que causaram milhares de mortos. Os donos do clube nunca terão aparecido para assumir responsabilidade pelo que aconteceu, e vários advogados garantiram que nenhuma indemnização foi paga às famílias das vítimas. Só em 2018 foi publicada a primeira grande investigação, feita por engenheiros, sobre este acontecimento. A série The Undoing, de 2020, protagonizada por Nicole Kidman, Hugh Grant e Donald Sutherland foi parcialmente rodada na mansão-museu de Frick.

A história deste industrial e colecionador mostra os meandros nem sempre dignos do mundo da arte, da relação entre artistas e mecenas sanguinários às fortunas construídas de forma desumana. A história de Henry Clay Frick faz lembrar um episódio mais recente, o escândalo de outra família muito dada à filantropia, os Sackler, donos de um império farmacêutico, a Purdue Pharma, responsáveis por doar generosas quantias a museus como o MET, de Nova York, a Tate Britain ou o Louvre, mas também a universidades como Harvard, Yale, Oxford ou King’s College, e que estão associados a vítimas do opioide OxyContin, o que levou à retirada do seu nome de vários museus, em parte, devido às ruidosas manifestações encabeçadas pela fotografa americana, Nan Goldin. A história deste escândalo está documentada na série Painkiller e no documentário Toda a Beleza e a Carnificina.

“Basta pensarmos em Caravaggio ou Wagner para sabermos que até os artistas estão longe de serem pessoas éticas. Muitos não o foram. O mesmo se passa com os mecenas. Mas nesta questão, prefiro pensar que o mal que foi feito tende a diluir-se no tempo e na história enquanto o Bem permanece nas obras criadas”, diz-nos António Filipe Pimentel. O diretor do Museu Gulbenkian acrescenta ainda que “hoje, felizmente, temos uma visão dos direitos humanos que não havia há 200 anos, e não podemos ler o passado com as premissas do presente. E em relação ao Henry Frick, penso que do mal que ele fez fica o bem para o futuro que a coleção dele nos lega”. “A humanidade é feita de luz e sombra”, finaliza.

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