Henry Kissinger, secretário de Estado norte-americano, olhou a Revolução dos Cravos com desconfiança e pessimismo, receava que os comunistas matassem Mário Soares em 1975, mas desculpou os soviéticos pela onda vermelha em Portugal.
A Revolução dos Cravos, depois do 25 de Abril de 1974, prolongou-se até ao 25 de Novembro de 1975, o confronto militar em que os “moderados” e o PS venceram a “esquerda militar”, após meses de radicalização no país, à direta e à esquerda, bombas em sedes do PCP, ocupações de terras no Alentejo. E fez-se de jogos de sombras, de apoios, mais ou menos às claras, dos soviéticos aos comunistas e dos norte-americanos aos chamados moderados, a começar pelo PS, num mundo dividido pela Guerra Fria, entre os EUA e a URSS.
Num tempo em que as ameaças de golpe, à direita e à esquerda, eram notícia de capa de jornal, o secretário de Estado de Richard Nixon e de Gerald Ford, admitia, em surdina, que Portugal seguisse os passos, um ano antes, do Chile, onde o general Pinochet, com o apoio de Washington, liderou o golpe da extrema-direita que depôs (e matou) Salvador Allende, à frente de um Governo de frente de esquerda.
Em 4 de fevereiro 1975, antes de Portugal ir a votos em 25 de abril — eleições que deram a vitória ao PS de Soares e apenas 12% ao PCP — Kissinger reuniu-se com o chamado Comité dos 40, organismo que supervisionava operações clandestinas e que incluía os serviços secretos, a CIA.
“Os comunistas vão arrastar Soares para a esquerda até ele perder apoio e depois vão matá-lo. As forças armadas vão fazer um golpe de estado sob liderança dos comunistas”, antevia Kissinger.
Crítico de Mário Soares, que considerava fraco, Kissinger chegou a dizer-lhe, em outubro de 1974, que seria o “Kerensky português”, o dirigente socialista russo derrotado por Lenine na revolução russa de 1917. Um erro de análise admitido anos mais tarde, numa conversa com Soares, então primeiro-ministro.
As eleições para a Assembleia Constituinte, em abril de 1975, ditaram a vitória dos moderados, mas o secretário de Estado não entendia que os comunistas continuassem no Governo em Portugal e admitia um golpe.
Em agosto de 1975, Kissinger reuniu-se em Washington com o embaixador norte-americano em Lisboa, Frank Carlucci, em que foram discutidas as hipóteses de êxito de um golpe da direita em Portugal. “Não sou assim tão contra um golpe desse tipo [de direita]”. A confissão surge em letra de forma numa ata revelada há dez anos pelo Departamento de Estado, que desclassificou um grande número de documentos até então com o carimbo de secretos.
Já tinha passado mais de um ano sobre o golpe que derrubou a ditadura, a 25 de Abril, e o Governo de Lisboa era liderado por Vasco Gonçalves, o “inimigo número um” dos EUA. Carlucci insistiu que o maior risco para os objetivos norte-americanos eram António de Spínola, primeiro Presidente após o 25 de Abril, que fugiu de Portugal na sequência da tentativa de golpe de 11 de março, e a extrema-direita.
Carlucci opôs-se, tal como já se opusera à tese da vacina de Kissinger: “perder” Portugal para os comunistas, apoiados pela União Soviética, porque tal funcionaria como “vacina” para Espanha ou Itália. O diplomata defendeu, isso sim, o apoio dos EUA aos “moderados”, incluindo o PS de Mário Soares.
A outra dor de cabeça em Washington era o apoio soviético ao PCP de Álvaro Cunhal. Surpreendentemente, em 15 de agosto de 1975, numa reunião em Washington, o secretário de Estado desresponsabilizou, em privado, a URSS pela radicalização política durante o processo revolucionário em 1975, mas subiu, em público, o tom do discurso para evitar que os soviéticos pusessem “a mão em Portugal”.
“Não é justo culpar os soviéticos pelo que se está a passar em Portugal”, comentou Kissinger numa reunião de um grupo informal sobre o controlo de armamento, que juntava especialistas de universidades, em 15 de agosto, no Departamento de Estado, numa altura em que Portugal vivia o que se chamou Verão Quente.
Kissinger tinha feito, na véspera, em Alabama, um discurso de aviso quanto a Portugal, “em parte devido à pressão [de Moscovo] e em parte para evitar que os soviéticos ponham a mão em Portugal”.
Mas “falar aos soviéticos” não. Foi o que Kissinger disse nessa reunião em Washington. “É um sinal de fraqueza nossa irmos falar aos soviéticos. A sua contribuição [para Portugal] é relativamente menor e se não conseguirmos contrapor o dinheiro que eles [soviéticos] estão a investir, estamos numa má situação. Se tivéssemos feito em Portugal o que fizemos no Chile, o resultado seria o mesmo”, afirmou.
Ao “falar aos soviéticos”, Kissinger refere-se aos avisos de vários líderes europeus, entre eles o chanceler da RFA, Helmut Schmidt, ao líder soviético, Leonid Brejnev, para travar qualquer tentativa de tomada do poder pelos comunistas portugueses.