O regime democrático instituído em Portugal com o 25 de Abril de 1974 “escolheu não entrar na batalha contra a propriedade privada”, considera a socióloga Ana Drago, para explicar que a habitação seja esta terça-feira “o direito menos cumprido”.

Entrevistada a propósito do seu livro “A cidade democrática. Habitação e participação política no pós-25 de Abril” (editado pela Tinta da China), a investigadora do Centro de Estudos Sociais de Coimbra recorda que, na saúde e na educação, o Estado democrático pôde criar “uma rede pública onde havia pouca oferta privada”, sem “verdadeiramente mexer com grandes interesses”.

Ora, para fazer provisão pública de habitação, a baixos preços e a custos controlados, o Estado teria que ter imposto “regras e mexer diretamente com a propriedade fundiária que existia no país, em particular nas áreas metropolitanas”, distingue.

Em vez disso, achou que o aspeto habitacional seria “resolvido pelo mercado” e, hoje como antes, é “o mesmo debate” que divide esquerda e direita, sobre impor, ou não, “custos aos setores privados”, sejam proprietários, construtores, bancos, pela provisão pública de habitação.

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A opção do regime democrático resultou numa “espécie de continuidade” das políticas de habitação do Estado Novo, observa Ana Drago, destacando que apenas houve uma “interrupção na altura do PREC [Processo Revolucionário Em Curso]”, com a “tentativa de estruturar uma […] provisão pública muito mais robusta”.

Porém, a partir de 1977, isso “vai-se esvaindo um pouco e o regime democrático aposta muito na lógica de sustentar o setor da construção”, importante para a economia portuguesa e a criação de emprego, e “no endividamento das famílias para adquirir casa própria”, observa a socióloga.

Sobre o parque habitacional público de Portugal na atualidade, Ana Drago confessa ter mudado de opinião sobre a ligação entre o seu reforço e a moderação dos preços, referindo o exemplo da Holanda, que tem 30% de habitação não mercantil e, “mesmo assim, tem tido subidas de preços absolutamente avassaladoras”, porque “a corrida ao investimento no imobiliário e na habitação” passou a ser “transnacional”.

O stock público habitacional é “muito importante para determinados segmentos da população, porém, realça, só se conseguirá perceber o que está a acontecer em Portugal se se olhar para a procura externa, para o alojamento local e a compra por estrangeiros (residentes não habituais e vistos ‘gold’, por exemplo).

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“Se não tiveres algum mecanismo […] alguma regulação daquilo que é o contexto das rendas e teres alguma também capacidade de regular aquilo que são as procuras externas, alojamento local, compras por não residentes, como está a fazer agora o Canadá, já fez a Nova Zelândia, […] não vejo maneira de baixar os preços”, diz.

No atual cenário, “a ideia de injetar mais oferta, […] quando tens uma procura que não consegues estimar, porque vem de fora, não é a solução certa”, contesta, defendendo mecanismos internos de regulação do mercado.

“Falas de regulação do mercado, toda a gente diz ‘ai meu Deus, vão afastar os investidores’. Pois, mas é, que neste momento, o problema do investimento é o problema do crescimento dos preços das casas“, aponta.

Sobre o reforço do cooperativismo, que considera “muito útil”, a socióloga assinala que é preciso o apoio de políticas públicas.

Nas medidas que foram apresentadas pelo novo Governo está “a ideia da garantia do Estado ao financiamento das cooperativas”, o que “é absolutamente determinante”, concorda, mas acrescentando que “não pode ser só” isso e tem que haver “algum financiamento público a fundo perdido”.

Ana Drago pede para não se “negligenciar” as classes médias, onde estão muitos jovens que não conseguem ter casa.

“Senão, aquilo que vai acontecer é aquilo que já começas a ver em alguns sítios, que é ‘estão ali a construir casas para os bairros mais carenciados, mas o meu filho tirou o curso na escola superior de não sei quê e não há casa para ele’, porque há um segmento de classe média-baixa, que são os ‘nem-nem’, que nem são suficientemente pobres, nem são suficientemente ricos”, retrata.

Sobre a proposta do Governo para construir em solos rústicos, a investigadora reage: “Temos um problema de meio século ou mais de desordenamento territorial e urbano e, portanto, a ideia de construir com grande densidade em terreno rústico é o pior que nos pode acontecer neste contexto.”

Em relação às anunciadas “novas centralidades urbanas”, prefere esperar para ver, receando que “signifiquem uma lógica de planeamento metropolitano em que voltas a construir dormitórios, só que agora, em vez de ser a 30 quilómetros ou 40 quilómetros de Lisboa, passa a ser a 80 quilómetros de Lisboa, mas, na verdade, não deixam de ser dormitórios”, obrigando as pessoas a dirigirem-se ao centro da cidade todos os dias, sem as necessárias infraestruturas de transporte.

“Temos que voltar a essa ideia […] de que uma cidade socialmente diversificada, com diferentes segmentos sociais, a cruzarem-se todos os dias pelos mesmos espaços de quotidiano potencia a democracia”, sustenta.

Reconhecendo que os anteriores programas de realojamento construíram “espaços que muitas vezes parecem guetos”, a socióloga apela a que se aprenda com os erros.

“Esta ideia de que, para dares uma casa decente às pessoas, as vais realojar em sítios onde elas perdem os seus laços comunitários, onde não há nada à volta, é matar o tecido urbano”, sentencia.