No final de abril, a eurodeputada Anabela Rodrigues (Bloco de Esquerda) levou a Estrasburgo quatro mulheres — Adelina, Rosa, Maria e Elisabete — para falarem aos membros do Parlamento Europeu sobre as suas histórias de vida. Todas são, ou já foram, empregadas domésticas, trabalhando em limpezas de casas particulares em condições de grande precariedade e sem qualquer tipo de proteção legal ou social.

A eurodeputada bloquista (que assumiu funções em março para substituir Marisa Matias, eleita para a Assembleia da República, e se tornou a primeira mulher negra a representar Portugal no Parlamento Europeu) conhece o drama destas mulheres na pele. “Eu sou filha de uma empregada doméstica, que infelizmente também morreu com uma reforma muito pequena e que, infelizmente, teve que trabalhar também das 6h às 9h da manhã porque era isso que permitia, pelo menos, ter um fundo de desemprego”, conta Anabela Rodrigues.

Maria Varela, uma das mulheres que Anabela Rodrigues levou a Estrasburgo, trabalha há 24 anos como empregada doméstica, e diz que é uma exceção à regra. “Graças a Deus, não tenho razão de queixa”, diz a mulher, que há 20 anos mantém o trabalho diário numa casa particular. Os seus patrões pagam-lhe justamente e asseguram a regularidade da documentação e das contribuições para a segurança social, o que lhe vai permitir ter uma reforma, ainda que curta. Mas Maria está nesta luta pelas outras, a maioria.

“Conheço pessoas que até choram porque o patrão quer que faça isto, faça aquilo”, conta a mulher. “Essa é a minha luta. Não é para mim, é para os outros. Às vezes, nem têm descontos, nem têm trabalho digno, choram que se fartam”, acrescenta, lembrando que muitas recorrem a ela para pedir ajuda. Há casos de mulheres que aceitam todo o tipo de condições porque têm “a renda de casa para pagar” — e acabam por assinar contratos que as prejudicam, mesmo antes de os ler. “Tem que ler tudo, mulher! Se não tem óculos, põe a lupa”, ri-se.

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Maria foi ao Parlamento Europeu sem vergonhas. “Gostei muito, porque vi que posso exprimir o que eu faço e com orgulho”, destacou. “Faço tudo isto com orgulho.”

“Sem limpeza não há quem viva”

Desta ida a Estrasburgo nasceu um manifesto público de defesa dos direitos destas trabalhadoras, maioritariamente mulheres, que inclui um compromisso que pode ser subscrito por qualquer candidato ao Parlamento Europeu nesta campanha eleitoral. Para assinalar o lançamento deste projeto, a cabeça-de-lista do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, que anda por esta semana em campanha eleitoral, passou a manhã deste domingo numa iniciativa com várias trabalhadoras domésticas em Lisboa — e, no final, assinou publicamente o manifesto, onde se comprometeu, entre outros, a “apoiar o restabelecimento de uma carreira profissional para os trabalhadores domésticos”.

“Nós queremos garantir às trabalhadoras do serviço doméstico, trabalhadoras da limpeza, trabalhadoras do cuidado, que tenham os mesmos direitos que qualquer outro trabalhador”, disse Catarina Martins aos jornalistas. “O compromisso é sobre isso. Em Portugal houve alguns avanços, mas tão poucos. Ainda não têm os mesmos direitos e, regra geral, na Europa é assim: às trabalhadoras de serviço doméstico não são reconhecidos direitos básicos de trabalhadores.”

Antes de falar aos jornalistas, Catarina Martins esteve a ouvir testemunhos de outras mulheres e a assistir a uma peça de teatro participado em que algumas das mulheres presentes foram chamadas a representar situações clássicas que acontecem no trabalho doméstico. A iniciativa foi animada pelas Batucadeiras Bandeirinhas da Boba, um grupo de música tradicional cabo-verdiana, com sede na Amadora, composto por várias mulheres de origem africana — muitas delas também empregadas domésticas.

Ilda Vaz, uma das mulheres que pegaram no microfone durante a sessão que decorreu no jardim da Quinta das Conchas, no Lumiar, em Lisboa, falou sobre a discriminação a que muitas são sujeitas. “Vamos para casa de uma patroa para ir trabalhar e recebem as pessoas com boa cara. Trabalhamos dois, três dias, até nos começarem a humilhar”, contou. “Não são todas, há umas que têm um ser humano no coração. Mas algumas vão humilhando, pedem para lavar uma cuequinha, vão desprezando.”

Muitas veem-se forçadas a aceitar tudo isto. “A gente vai aturar isto tudo para poder suportar os nossos filhos”, disse, acrescentando que muitas sofrem com “depressão” por tudo “o que passam na casa das pessoas”. Não há “direito digno para as senhoras que limpam casas, empresas, o Parlamento, os hospitais”, apontou Ilda Vaz. Mas “sem limpeza não há quem viva” e “nós não temos reconhecimento disto”.

As trabalhadoras domésticas, continuou Ilda Vaz, sentem-se discriminadas em relação a outros empregos, por exemplo, no que toca ao direito às férias. “Se nós queremos um ou dois dias de férias, porque preciso de tratar do meu filho, tratar de uma coisa minha, não! Tem de ser um mês!”, lamentou. “Mas porque é que não temos direito de dividir as nossas férias?”, perguntou, lembrando que os outros trabalhadores têm maior liberdade para agendar as suas férias.

Adelina Ramos, outra das mulheres que viajaram a Estrasburgo com Anabela Rodrigues, e que está já à beira da reforma, pegou no microfone para deixar apenas um desejo: “Gostava de ter uma reforma que desse para comer.”

“Não se pode humilhar quem limpa”

Em declarações aos jornalistas durante a ação de campanha, Catarina Martins manifestou “orgulho” no trabalho desenvolvido por Anabela Rodrigues no Parlamento Europeu neste âmbito.

“O Bloco de Esquerda fez, no Parlamento Europeu, um trabalho de que nos orgulhamos muito, que foi feito pela Anabela Rodrigues nesta reta final, que foi levar trabalhadoras do serviço doméstico a Estrasburgo para propor às eurodeputadas e eurodeputados, candidatos e candidatas, um compromisso: que quem trabalha em limpeza e cuidados seja respeitado. É trabalho sobretudo de mulheres e é trabalho muito mal pago e sem direitos. Nós não podemos continuar a tratar tão mal quem tem funções tão essenciais na nossa vida”, explicou a cabeça-de-lista do Bloco de Esquerda, antes de também ela assinar o compromisso.

“Todos os dias estão sujeitas a humilhações. Tudo isso deve ser combatido. Dizia há pouco uma das trabalhadoras, e tão bem, a Dona Ilda, que o mundo não vive sem limpeza. Não se pode humilhar quem limpa”, acrescentou.

Questionada sobre se tem a expectativa de que os candidatos dos outros partidos também assinem o manifesto, Catarina Martins disse esperar “que toda a gente se possa comprometer”, mas reconheceu que isso dificilmente acontecerá. “O que nós temos visto, infelizmente, é que quando chega tanto aos direitos do trabalho como aos direitos das mulheres, infelizmente não há assim tantos partidos capazes de se comprometer”, destacou.

Anabela Rodrigues, por seu turno, manifestou-se esperançosa na possibilidade de outros partidos se juntarem. “Gostávamos mesmo que outros candidatos às eleições europeias assinassem. É uma realidade que afeta não só quem é de esquerda como quem é de direita, como quem é de centro. Isto vai produzir igualdade de direitos”, disse a eurodeputada.

A bloquista recordou que “só no ano passado”, no contexto da nova legislação laboral da Agenda do Trabalho Digno, é que foi regularizada, por exemplo, a obrigatoriedade de contrato de trabalho de serviço doméstico ou o limite de horas de trabalho. Mesmo assim, defende Anabela Rodrigues, continua a haver grandes injustiças em relação a estas trabalhadoras — que, estatisticamente, se encontram também entre as mais frágeis da sociedade. Quase 80% são mulheres e muitas são imigrantes cujas situações estão ainda por regularizar, o que leva a que sejam aceites condições ainda mais precárias por falta de capacidade negocial.

Anabela Rodrigues, que tem sido a grande promotora desta iniciativa, deverá contudo ficar fora do Parlamento Europeu. Surge em terceiro lugar na lista do Bloco, atrás de Catarina Martins e José Gusmão — e a maioria das sondagens tem dado como cenário mais provável a eleição de apenas um eurodeputado bloquista.

“Vamos a estas eleições com muita humildade, teremos os votos que merecemos, sabemos que o trabalho da Anabela é extraordinário”, disse Catarina Martins, questionada sobre a mais que provável não continuidade de Anabela Rodrigues em Estrasburgo. “O compromisso que nós temos com esse trabalho é total. Temos vindo, há algum tempo, a trabalhar com a Anabela Rodrigues nestas questões. Ela é das pessoas mais preparadas deste país. Sinto um enorme privilégio por contar com ela nesta lista e nesta luta.”

O tema escolhido pelo Bloco de Esquerda para marcar este dia de campanha toca em duas bandeiras do partido: os direitos das mulheres e a imigração.

Mas, no que toca aos adversários à direita, Catarina Martins não olha a géneros. Questionada sobre as recentes declarações de Giorgia Meloni (líder dos Conservadores e Reformistas), que quer “enviar para a oposição a esquerda” e que pode mesmo vir a apoiar o PPE de Ursula von der Leyen, Catarina Martins disse que “as mulheres são tão diferentes umas das outras como os homens são tão diferentes uns dos outros”.

“Não tenho nenhuma condescendência para com as minhas adversárias, se elas forem mulheres. Nós queremos é igualdade e isso é muito importante. As mulheres que defendem o seu lugar de privilégio e não os direitos de todas as mulheres, incluindo estas, como estão aqui hoje connosco, mulheres negras, muitas imigrantes, muitas ainda a lutar para terem a sua documentação”, disse ainda. “Quem não respeita estas mulheres, que são fundamentais para o nosso país, não respeita país seja qual for o género que tiver.”