Lightless (Quando não há luz) é o nome da exposição que Sara Bichão inaugura, nesta quarta-feira, no Museu de Serralves, depois de ter passado mais de 40 dias a produzir in loco, em diferentes momentos, ao longo de ano e meio. Durante esse tempo de residência artística entrecortada, a artista converteu em ateliê uma sala na quinta da Fundação, com apenas um muro a separá-la do Bairro da Pasteleira, zona tensa da cidade, associada ao tráfico e consumo de estupefacientes, e também isso terá influenciado as suas criações. É que o seu trabalho tem algo de esponja, como haveria de notar a curadora-chefe do Museu, Inês Grosso, numa visita guiada à exposição, patente, até ao dia 3 de novembro, na Galeria Contemporânea do Museu e na Capela da Casa de Serralves.

Se dúvidas houvesse sobre a sua capacidade de absorver o que a rodeia para criar algo novo, cedo seriam dissipadas, porque os trabalhos expostos têm uma particularidade: na sua conceção foram usados objetos remanescentes de outras exposições organizadas pelo Museu, e até matéria orgânica recolhida no Parque, numa lógica de reciclagem, reaproveitamento. “Foram os objetos que me encontraram”, diz Sara Bichão. Mas João Brites deu uma grande ajuda, ao ponto de ter sido apontado como seu “braço direito”, neste contexto específico. Sendo técnico de Serralves desde o início, conhece bem os cantos à casa, e tratou de a mostrar.

Sara Bichão © Nvstudio

João Brites conduziu Sara Bichão pelas zonas menos conhecidas do Museu, deu-lhe apoio e enquadramento nesse vasculhar das reservas à procura de algo que fizesse sentido usar no seu processo de trabalho, que a curadora Inês Grosso classifica como “muito emocional”. Nessa busca, a criadora — que tem em Lisboa a sua base, sem perder de vista a cena internacional — encontrou “pedaços de obras de artistas” de quem muito ouvira falar, “que ali ficaram, mas têm uma memória forte, que vibra, quando decidimos trabalhar com elas”. Lembra-se de estar a passear com Brites pela cave e de perceber que tudo encerrava uma história, e que ele a conhecia. “Fui muito bem tratada pelas equipas, pelos jardineiros. Senti-me em casa”, assevera.

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Pigmento de uvas, azulejos e mangueiras

Mas, afinal, que elementos de Serralves incorporou Sara Bichão nas suas obras? Uma visita à Galeria Contemporânea do Museu explica, a começar pela cortina de PVC proveniente da área técnica, no acesso à sala escurecida. Em Lightless (Quando não há luz), tudo assenta num jogo de contrastes que parte da dicotomia luz/penumbra, sem se esgotar nela. Numa exposição em que se fala de corpos, impermanência, natureza e imersão, outras dualidades vêm à tona: vida/morte, peso/leveza, interior/exterior, visível/invisível. E isto enquanto se procede a uma “quase reciclagem de memórias”, nas palavras de Inês Grosso.

© Nvstudio

Uma das matérias-primas mais impactantes a que a artista recorreu é o saibro, que está tão presente na paisagem do Parque, com o seu tom alaranjado, e serviu de base a um conjunto de dez esculturas — dez cabeças petrificadas, com orifícios no lugar dos olhos, a que a criadora chamou “Pedras”. Sara Bichão também usou o pigmento de umas uvas que havia junto ao ateliê improvisado como pintura. Aplicou a um espelho o rosa que cobre as paredes exteriores da Casa de Serralves. Fez uma peça com os azulejos verde-água que cobrem a fonte do Parterre Lateral (estavam em depósito, prontos a substituir algum que se partisse). Deu nova vida a molduras, cartões, até a mangueiras usadas por outro artista numa instalação – aplicou-lhes LEDS azuis de edições anteriores do evento “Serralves em Luz”, porque lhe interessava criar uma “luz líquida” que, no fundo, “é a noite”.

João Brites, o técnico do museu que acompanhou a artista e lhe mostrou a casa © Nvstudio

“O meu processo de trabalho normalmente usa, ou suga, a memória dos objetos, a ação passada que tiveram”, observa Sara Bichão, acrescentando que não vê grande sentido em “mandar fazer e encomendar formas”. O reaproveitamento de materiais é algo que a acompanha desde que começou a trabalhar. Já a preocupação ambiental “vem ganhando peso na mesma medida em que hoje, como pessoa, tenho mais consciência do que tinha”, reconhece. Diz-se “incapaz de fazer determinadas coisas”, devido à sua forma de estar na vida, e não a um movimento político. “Não me estou a ver fazer um orçamento de 500 mil euros para uma peça. É um valor que não tem justificação, a nível criativo. E sou incapaz de pedir para me produzirem mais quilos e quilos de plástico. Porque é realmente desnecessário.”

© Nvstudio

“O mais interessante para nós, que trabalhámos neste projeto, foi que nos obrigou a sair da nossa zona de conforto e a olhar de forma criativa para os nossos recursos”, refere, por seu lado, a curadora-chefe de Serralves. “Foi uma lição de como se pode fazer uma exposição a partir do que está à nossa volta.” Em nota de imprensa, Inês Grosso já havia sublinhando que o trabalho de Bichão, “mesmo sem uma intenção explícita, reivindica a arte como um ato de resistência, uma ferramenta para desafiar as normas estabelecidas e promover uma consciência coletiva sobre a importância da sustentabilidade e do respeito pelo meio ambiente”.

Uma pele para juntar aos “ossos do espaço”

Estamos, pois, na Galeria Contemporânea, onde Inês Grosso conta como, a meio de um dia de trabalho, recebeu de Sara Bichão uma mensagem de WhatsApp mostrando um papel manuscrito com as seguintes palavras: rosa, carne, terra, ossos, azul, noite, água, luz. “Fiquei a pensar na aparente aleatoriedade desta associação de palavras que se revelaram quase elementos-chave para se entrar na exposição”, recorda, pondo a tónica mais no sentir do que no compreender. E equiparando a mostra a “uma caverna, um refúgio”.

A curadora-chefe Inês Grosso © Nvstudio

Para aquela responsável, a obra de Bichão tem uma inegável relação com o corpo, seja o seu, que imprime e marca, seja um corpo amorfo, ausente ou em processo de metamorfose (não é à toa que uma das peças se chama “Casulo”). “A única coisa que entrou no Museu foi a pele da exposição, que é este tecido, que uso em várias exposições”, conta a artista, apontando o amontoado de dez sacos que ocupa o centro da sala, como se fossem cadáveres, a que chamou “Tumba”. “Tudo o resto”, diz, “já eram ossos do espaço”.

© Nvstudio

Da escuridão da Galeria Contemporânea à luz intensa que entra pelo janelão circular da Capela da Casa Serralves são só alguns passos, que já nos permitem olhar a envolvente de modo diferente. As cores ganham outro destaque, desde logo o saibro. E, quando subimos à sala da grande janela, o que vemos são desenhos, ou melhor, “extensões do pensamento da artista que se relacionam com a exposição”, no dizer de Inês Grosso. Também aí os materiais são reaproveitados, dos cartões que suportam as obras às molduras. E fica completa a lista enviada, em tempos, por WhatsApp: rosa, carne, terra, ossos, azul, noite, água, luz.