Mais de um quarto dos jovens portugueses admite ter medo do que os outros pensam quando publica ou partilha algo nas redes sociais e cerca de 18% admite ficar angustiado com o que lhe escrevem nos comentários. E cerca de 13% dos jovens portugueses já sofreu com a partilha de fotografias ou vídeos íntimos. Estas são algumas das conclusões de um estudo que aponta para o facto de as redes sociais levarem os jovens a ter uma vida “brutalmente intensa”.

O inquérito a 1.500 jovens (amostra representativa da população portuguesa entre os 18 e os 30 anos), incluíndo o projeto de investigação My Gender — Práticas de Jovens Adultos Mediados, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC)  é o primeiro estudo em Portugal a investigar como os jovens adultos se envolvem com a tecnicidade e os imaginários das aplicações móveis.

De acordo com os resultados a que a agência Lusa teve acesso, apesar de mais de metade dos jovens assumir sentir-se confiante com aquilo que publica nas redes sociais (58,6%) e não se preocupar com o que os outros pensam das suas publicações (50,5%), apenas quase um terço assume ter a certeza de que os seus seguidores gostam do que publica.

Para além do medo do que os outros possam pensar deles nas redes sociais, quase um quinto (18,4%) dos inquiridos admite que lhe causa angústia ver o que escrevem nos comentários das suas redes sociais e mais de um quarto (26,6%) assume que se irrita a ler o que as outras pessoas publicam nas redes sociais.

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Apesar disso, há também uma parte significativa (19,7%) que admite que já insultou pessoas nas redes sociais e 14,3% diz que quando não gosta do que lê ou vê deixa comentários críticos.

Segundo o estudo, cerca de 28% dos jovens portugueses assume que passa “muitas horas a ver o que outras pessoas partilham sobre a vida delas”, com quase um terço (32,5%) a assumir que fica com ansiedade quando não tem o telemóvel.

O inquérito realizado para o projeto MyGender demonstra que o telemóvel é, de longe, o principal meio a que têm acesso (92,8%), seguido do computador (84,1%) e da televisão (78,5%).

O telemóvel é também aquele que os jovens usam com maior regularidade (90,2% todos os dias).

No que toca às utilizações, os jovens vão sobretudo às redes sociais (mais de 80% todos os dias), veem séries (mais de 70% diariamente ou várias vezes por semana) e playlists de músicas (mais de 60% todos os dias ou várias vezes por semana).

Mais de metade dos utilizadores (59,9%) gasta entre duas a cinco horas diárias em aplicações móveis, em que as mais usadas são as redes sociais (apesar de as considerarem como apenas a sexta aplicação mais importante), seguidas de email e mensagens, todas acima dos 60% de utilização diária.

Se a maior parte dos jovens utiliza as aplicações para criar ou partilhar conteúdo online, esse é sobretudo em forma de fotografia (62,3%), com o vídeo a representar 12,7% e o texto apenas 8,2% dos conteúdos criados.

Os jovens são uma espécie de “cobaias digitais”, que vivem “completamente imersos na tecnologia”, à medida que ela se foi desenvolvendo, com a realidade digital e física a pertencerem ao mesmo “contínuo”, afirmou à agência Lusa Inês Amaral, que coordena o projeto juntamente com Rita Basílio Simões.

Segundo o inquérito, 66% joga em aplicações móveis, 42,4% usa aplicações para controlar os seus dados de saúde e 36% planeia o seu treino físico no mesmo meio.

Do universo da amostra do inquérito realizado no final de 2021, a maioria afirma-se heterossexual (83,5%), solteiro (76,3%), sem filhos (83,5%) e a viver com os pais ou familiares (63,5%).

Mais de metade tem ensino superior (53,1%), cerca de metade trabalha por conta de outrem e um pouco mais de um quarto (28,3%) da amostra é estudante.

Para além do inquérito, o projeto incluiu entrevistas, grupos focais, diários e análise das próprias aplicações.

Cerca de 13% dos jovens já sofreu com a partilha de vídeos íntimos

Por outro lado, o estudo revela que 13% dos jovens portugueses já sofreu com a partilha de fotografias ou vídeos íntimos seus e 15,7% daquela classe etária gosta quando são partilhados conteúdos íntimos desde que tenham sido autorizados.

Apesar de a maioria dos jovens portugueses (61,1%) bloquear pessoas nas redes sociais que enviam mensagens de teor sexual, 15,5% sentem-se confortáveis a partilhar a sua vida íntima em algumas aplicações e 18,1% enviam mensagens de teor sexual a outras pessoas no meio digital, segundo os resultados do projeto a que a agência Lusa teve acesso.

“É uma percentagem muito significativa” de jovens que aceita a partilha de conteúdos íntimos, disse à agência Lusa Inês Amaral, que coordena o projeto em conjunto com Rita Basílio Simões, considerando que a perspetiva é a de que esta percentagem continue a aumentar ao longo dos anos.

Segundo a investigadora e docente da FLUC, a exposição dos jovens a este tipo de conteúdos surge cada vez mais cedo. Ainda de acordo com o estudo, 28% dos jovens afirmam que seguem pessoas que partilham a sua vida íntima no digital.

Se apenas 31% dos inquiridos já utilizou ou utiliza aplicações de encontros, o meio digital acaba por se assumir também como um espaço de início de relações, com mais de um terço (36,4%) a dizer que já teve relacionamentos com pessoas que conheceu online.

“Poucas pessoas disseram utilizar o Tinder, sobretudo raparigas, que receiam receber conteúdo sexual não solicitado ou sofrer algum tipo de assédio e, portanto, não querem usar aquelas aplicações”, aclarou Inês Amaral, referindo que nas entrevistas a jovens ficou também claro que o uso dessas aplicações de encontros gera alguma ansiedade.

Através do estudo refere-se também que cerca de um quarto dos inquiridos afirma que já foi assediado por causa do seu género, pouco mais de 10% por causa da sua orientação sexual e cerca de 8% sofreu ataques por causa da sua etnia.

Quase 10% dos jovens admitem também terem sido perseguidos fora do digital por causa da sua participação online.

Mais de metade dos jovens não faz questão de afirmar a sua identidade de género e/ou sexual nas aplicações móveis, apesar de a maioria (66,2%) identificar o seu género nas aplicações em que tem conta.

O projeto de investigação, que termina em agosto, procurou olhar para as questões “ligadas com o género e sexualidade” nos jovens portugueses entre os 18 e os 30 anos, abordando também o estudo das aplicações e os seus usos por parte desta classe etária, explicou à agência Lusa Inês Amaral, docente que coordenou o estudo juntamente com Rita Basílio Simões.

Segundo Inês Amaral, a equipa do projeto — que começou em 2021 e que decorre até agosto — procurou perceber de que forma os usos de aplicações influenciam a vida das pessoas.

Para a investigadora, a grande maioria das plataformas continua a promover o chamado gender script (guião de género), ignorando as especificidades das pessoas que utilizam as aplicações.

Se a pessoa se identifica como mulher, o algoritmo apresenta-lhe determinado tipo de conteúdos. Enquanto se identifica como homem, o algoritmo identifica outro tipo de conteúdos“, notou, referindo também que em muitos dos casos as únicas opções de identidade são homem, mulher ou outro.

Na ótica de Inês Amaral, as plataformas acabam por tentar homogeneizar os seus utilizadores, com os jovens a terem plena consciência disso.

“A maior parte dos participantes [nos grupos focais] dizem que, de facto, involuntariamente, acabaram por reforçar estes padrões que estão culturalmente enraizados“, notou.

Rede sociais levam jovens a uma vida “brutalmente intensa”

As redes sociais levam os jovens a uma vida extremada e brutalmente intensa, com experiências positivas e negativas a acontecerem ao mesmo tempo, afirma Inês Amaral.

As experiências [nas redes sociais] são negativas e positivas, tudo ao mesmo tempo. É como se fosse o dia-a-dia das pessoas, mas ali. As pessoas podem ser assediadas ou assediar fora da rede, mas ali tudo é muito mais imediato. Isso faz com que, por um lado, as pessoas tenham uma grande tolerância, mas também há o outro extremo, que é a ansiedade e stress gerados”, disse à agência Lusa a investigadora da Universidade de Coimbra.

O inquérito demonstra que a maioria associa as redes sociais a experiências positivas, como criação de relações e afirmação de identidades, apesar de também serem referidas experiências negativas, como o assédio, o insulto (recebido e enviado) ou o medo daquilo que os outros acham.

As redes sociais geram ansiedade, mas ao mesmo tempo são um espaço para falar com os amigos, com os que conhecem e com aqueles que não conhecem. Para desabafar“, aclarou, referindo que as comunidades digitais acabaram por assumir os espaços intermediários entre “a casa e o trabalho ou a casa e a escola e que desapareceram”.

Para a docente da FLUC, é uma forma de estar, de “viver de uma forma brutalmente intensa em que parece que é tudo para ontem”, em que quer o assédio ou o elogio são imediatos.

No mesmo telemóvel onde numa aplicação fica ansioso, encontra outra associada à saúde mental. Também no mesmo dispositivo onde gasta várias horas diárias em diferentes atividades pode encontrar uma aplicação para monitorizar o tempo desperdiçado.

Para além do inquérito, o projeto incluiu entrevistas a jovens, grupos focais, diários e análise das próprias aplicações, para tentar perceber quais os usos por parte deste grupo etário de aplicações móveis.

Nas entrevistas, ficou percetível que os jovens se autocontrolam e monitorizam a sua expressão digital, utilizando ferramentas de privacidade e de segurança, sendo habitual terem “contas diferentes com objetivos diferentes“, contou Inês Amaral.

Já nos grupos focais, a investigadora notou que a internet é o primeiro recurso para qualquer dúvida.

“Seja no Youtube, Tiktok ou outras plataformas. Vão à procura de várias coisas relacionadas com a sua vida, pode ser para cozinhar qualquer coisa, para se maquilharem, para escolher produtos de higiene íntima, para questões de saúde, académicas ou de causas sociais. Tudo está ali”, referiu.

A equipa do projeto contou ainda com 16 jovens que fizeram um diário ao longo de um mês relacionado com a utilização que faziam do telemóvel e das aplicações.

Percebemos que têm noção plena da mercantilização dos dados por parte das plataformas. Apesar da noção plena da intrusão da tecnologia e de uma certa vigilância contínua, há uma aceitação prevalecente”, contou.

Dos diários, há relatos de uma pessoa que adormecia todos os dias a ver vídeos curtos do Youtube e que, de manhã, a primeira coisa que fazia era ver conteúdo no Tiktok, e uma jovem que “adormecia a fazer scroll [numa aplicação]”, afirmava que já sabia o que iria ver no dia seguir, por causa do seu padrão de consumo.

Outro participante relatava que tinha gastado a sua folga no Tiktok.

Há comportamentos que roçam quase a adição e, nos diários, há quem diga: isto faz mal”, recorda Inês Amaral.

No projeto, a equipa de investigação identificou também movimentos e tendências associados às práticas e usos de aplicações móveis e a interação entre humanos e tecnologia.

O projeto, com base nessa análise e com os dados dos inquéritos, apresenta vários cenários: a possibilidade de um extremar do individualismo associado a uma cultura do bem-estar no digital, um ativismo no digital que se assuma como uma espécie “de contra narrativa” face ao “controlo tecnológico e datificação [transformação de vários aspetos da vida em dados]”, a resistência ao digital que pode levar a lógicas de “isolamento” e “autoexclusão”, e a normalização da invasão da privacidade.