Houve a construção de uma nova identidade, a formatação de um novo ADN, aquele desenho de processos diferentes com o mesmo propósito de ser melhor do que os adversários. Ainda assim, e ao longo de dez jogos (e outras tantas vitórias) na qualificação, existiu sempre uma palavra a nortear aquilo que era Portugal versão Roberto Martínez: regularidade. A Seleção podia marcar mais ou menos golos mas ia conseguindo criar as mesmas oportunidades. A Seleção podia ou não sofrer golos mas mantinha os índices de ameaças ao mesmo nível, neste caso baixo. Mais do que ganhar, jogar melhor ou pior e ter mais ou menos domínio, aquilo que foi empolgando os adeptos nacionais foi essa previsibilidade de saberem sempre com o que contavam. Depois, os particulares, em momentos ou no seu todo, fizeram tremer esses alicerces. No Europeu, ainda mais.

A regularidade deu lugar à irregularidade, a previsibilidade vestiu a sua imprevisível. Houve o jogo bom com a Turquia, onde Portugal foi fiel aos seus princípios, soube ser eficaz nos momentos chave e respeitou aquilo que Martínez construíra desde que chegara. Houve o jogo mais ou menos ante a Rep. Checa, com estatísticas que apontavam para um filme que não aconteceu da forma que se queria mas que foi salvo por um capítulo final que estava destinado a ser escrito por um herói improvável chamado em cima do minuto 90 para tocar na bola e ser feliz. Houve o jogo (muito) mau frente à Geórgia, com uma equipa a pisar terrenos que nunca foram os mais confortáveis, a entrar numa espiral de erros individuais e a deixar uma imagem coletiva que mesmo não contando com as principais unidades foi tudo menos positiva. E agora, que jogo chegaria?

“Espero um bom jogo. Respeitamos a qualidade da Eslovénia, que tem uma das melhores estruturas defensivas do torneio. Primeiro que tudo, precisamos de atacar bem, de sermos muito rápidos na recuperação e a cortar quaisquer saídas rápidas que eles possam querer ter. Depois, também precisamos de controlar muito bem a profundidade. Respeitamos muito a Eslovénia porque os conhecemos muito bem. Tivemos um jogo particular em março, por isso, não tenho dúvidas que precisamos de uma exibição muito completa e de sermos muito assertivos com bola. Grande parte da posse de bola no jogo será nossa, mas teremos de fazer um jogo muito completo do início ao fim. Espero uma equipa muito confiante”, sintetizara Roberto Martínez na antecâmara da partida à RTP, quando revelou o onze que repetia o jogo da Turquia.

Não foi isso que aconteceu. A organização defensiva da Eslovénia teve mérito na forma como conseguir ir travando as tentativas de ataque nacionais, sendo que o primeiro remate enquadrado com perigo de bola corrida chegou apenas em cima do minuto 90. Aí Oblak brilhou, mais tarde Oblak brilhou ainda mais, de seguida houve um festival de Diogo Costa a ficar com todo o brilho de uma noite emotiva, daquelas que fica na memória e que mais tarde deve ser recordada. Mais tarde daqui a uns anos, mais tarde daqui a uns dias: Martínez terá muito que pensar antes do duelo com a França nos quartos do Campeonato da Europa.

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Portugal teve um início de jogo afirmativo, dominador, à procura de mais dez metros de jogo ofensivo com os movimentos que fazia nos dez metros entre defesa e meio-campo eslovenos, fosse pelos corredores laterais, fosse pelos movimentos entre linhas de Bruno Fernandes. E regressando a esse tema que preencheu todos os últimos dias, Martínez manteve-se fiel aos princípios que defende para a Seleção neste tipo de partidas, com uma saída em posse a três que colocava Nuno Mendes em linha com Pepe e Rúben Dias, soltava Cancelo na direita e dava todo o flanco esquerdo a Rafael Leão (ou seja, uma nuance face ao recuo de Palhinha para a zona entre os centrais e a subida de Nuno Mendes para Leão entrar mais ao meio). Mesmo sem remates com perigo nos 15 minutos iniciais de domínio, Ronaldo, Leão e Bruno Fernandes tiveram momentos de quase finalização a centímetros do toque final na área após cruzamentos saídos do lado direito do ataque.

Depois, a Eslovénia conseguiu equilibrar. Não que jogasse muito mas porque conseguiu colocar duas bolas com receção dos avançados na profundidade, que tiveram o condão de animar uma equipa que precisava de “respirar” e congelar bola mais longe da sua área. Um pouco à semelhança do que aconteceu no último jogo com a Inglaterra, os eslovenos ganhavam confiança em posse e tentavam subir linhas, sendo que essa fase foi abrindo também a oportunidade para que Portugal arriscasse a procura dos espaços em transições rápidas onde foram faltando mais linhas de passe para criar os desequilíbrios. A meia hora chegava sem golos, com Diogo Costa a ser pouco mais do que um espectador que entrou no relvado sem invasão nem pagar bilhete e com Jan Oblak a defender de forma fácil um desvio a meias entre cabeça e ombro de Ronaldo (30′) antes da grande oportunidade do capitão nacional com um balázio de livre direto a sair perto da trave (34′).

Portugal tinha manietado de vez a Eslovénia. Era pela direita que vinham quase todos os cruzamentos que ficaram perto de finalização entre Cancelo, Bernardo Silva ou Bruno Fernandes quando caía nessa zona para ganhar superioridade numérica. Era pela esquerda que apareciam os rasgos individuais 1×1 com Rafael Leão a ser o principal protagonista e Nuno Mendes a tentar também as suas subidas. Era pelo meio que faltava algo. Finalização na área, procura de espaços na construção, agressividade na reação à perda. Foi a partir daí de um momento desses que Sesko teve o melhor momento esloveno na primeira parte para defesa de Diogo Costa antes do descanso que chegou com todos de mãos na cabeça depois de uma jogada de Leão com passe atrasado para o remate na passada de João Palhinha que acertou no poste e passou ao lado (45′).

O segundo tempo começava com os mesmos onze nomes e uma confirmação que vinha do próprio Martínez: aquilo que era necessário melhorar passava por posicionamentos, intensidade, velocidade e agressividade nos duelos 1×1 e não por novos jogadores (pelo menos logo a abrir). Nem tudo foi como o técnico quis, apesar de ter surgido o primeiro remate enquadrado para defesa de Jan Oblak num livre mais uma vez marcado por Ronaldo em força (55′). Estava dado o mote para mais um período com Portugal por cima, neste caso com João Cancelo a ter grande influência com três arrancadas pela direita que criaram superioridade mas não tiveram depois finalização. Era isso que faltava nesses momentos de supremacia: encontrar o jogador que surgisse num espaço sem defesas para prensarem o remate. E foi nesse período que a Eslovénia criou a sua primeira grande oportunidade, com Sesko a disparar em velocidade mas a atirar na área ao lado (62′).

Foi Martínez que começou por mexer no jogo a partir do banco, com o “sacrifício” de Vitinha para a entrada de Diogo Jota. Portugal ganhava mais uma unidade para fazer companhia a Ronaldo pelo meio, levando ao recuo de Bruno Fernandes para pensar o encontro à frente de João Palhinha. Era uma mudança acima na Seleção a nível de posicionamento, que fazia sentido perante a marcha-atrás que os dois blocos baixos da Eslovénia tinham colocado quando o conjunto nacional subiu mais as suas linhas com outra projeção dos laterais (63′). Sem resultados práticos, Francisco Martínez colocou Francisco Conceição em campo mas a partida da esquerda, por troca direta com Rafael Leão, provavelmente a pensar naquilo que João Cancelo tinha acrescentando quando subia pela direita e a procurar outra dinâmica no flanco oposto com o ala (74′).

Deveria Vitinha ser o primeiro a sair (a não ser que revelasse algum tipo de queixa física, o que não pareceu quando foi para o banco)? Não. Deveria Rafael Leão ser o primeiro da ala a sair? Também não. No entanto, Martínez olhou não só para o que se estava a passar mas também para aquilo que são quase as hierarquias que se vão estabelecendo com o tempo, como se uma mexida nas mesmas fosse um beliscar do que quer que fosse em relação ao que são como jogadores e ao que representam para a Seleção. Assim, os minutos foram passando sem que Portugal melhorasse em relação ao que estava a ser até ao momento das mexidas (sem que isso estivesse ligado ao rendimento dos elementos que entraram). O prolongamento parecia inevitável, algo que se confirmou depois da melhor oportunidade desperdiçada por Ronaldo para defesa de Oblak (90′).

O prolongamento chegava de novo sem substituições, apesar de haver elementos já em défice físico, mas com alterações que procuravam potenciar quem estava mais fresco e proteger quem andava mais desgastado. Na direita apareceu Francisco Conceição, na esquerda foi caindo Jota sem esquecer os movimentos de apoio a Ronaldo (com Bruno Fernandes e Bernardo Silva mais no meio). Foi numa dessas jogadas que o avançado do Liverpool ganhou a possibilidade para Ronaldo ser feliz ao ganhar uma grande penalidade mas também aí o capitão foi impotente para superar Oblak, que defendeu o castigo máximo (104′). A tensão era mais do que evidente, com o número 7 a ser incapaz de controlar as lágrimas na pausa para troca de campo, mas esta era mesmo a noite do guarda-redes esloveno, que voltou a tirar o golo a João Palhinha (108′). O jogo era um enredo de loucos, com Diogo Costa a salvar Portugal depois de Pepe cair sozinho e Sesko aparecer isolado sem oposição com o central a ficar caído (115′). Fisicamente há muito que havia jogadores abaixo da reserva, sendo que as alterações vieram a dois minutos do final do prolongamento a pensar também nos penáltis.

A pérola

  • Diogo Costa teve uma noite praticamente sem trabalho durante 115 minutos. Fez raríssimas defesas a remates que saíram sem perigo, teve um ou outro cruzamento para agarrar, soube ler o jogo com cortes por estar mais adiantado em relação à baliza a roubar profundidade à Eslovénia, pouco mais. Aí, numa falha que mais não foi do que um quebrar total em termos físicos de Pepe, segurou a Seleção tirando o golo a Sesko isolado. No entanto, o melhor estava ainda para vir e para ficar na história: o guarda-redes defendeu as três grandes penalidades dos eslovenos e carimbou a passagem de Portugal aos quartos.

O joker

  • Oblak terminou como a grande figura da Eslovénia. Era quase como se os eslovenos pudessem dar o máximo para travar tudo o que aparecesse pela frente mas sempre com essa consciência de que, se passasse alguma coisa, havia um muro entre os postes para salvar a situação. Foi assim até às grandes penalidades, onde Diogo Costa ganhou esse duelo direto. Se Portugal sofreu a ponto de ter de ganhar nos penáltis, isso deveu-se ao número 1 do Atl. Madrid e também ao central Bijol, que voltou a fazer um encontro gigante como tinha acontecido com a Inglaterra (mas desta vez sem recompensa no final).

A sentença

  • Com este triunfo, a Eslovénia fica eliminada do Europeu com quatro empates noutros tantos jogos e apenas dois golos sofridos ao longo de 390 minutos (e também apenas dois marcados). Já Portugal vai seguir para os quartos, juntando-se à festa do futebol que o Europeu irá apresentar na próxima sexta-feira: primeiro, Alemanha-Espanha; depois, Portugal-França. Melhor nesta fase era impossível…

A mentira

  • A forma como Roberto Martínez foi mexendo na equipa teve alguns impactos diretos na partida como a grande penalidade que Diogo Jota ganhou na primeira parte do prolongamento. Todavia, não havendo essa capacidade de prever o futuro, as substituições não foram acertadas a três níveis distintos: 1) Portugal não ganhou no meio-campo com a saída de Vitinha, mesmo havendo essa vontade de arriscar mais com Jota na frente; 2) Portugal não ganhou com a saída de Leão na esquerda, até porque Francisco Conceição só começou a aparecer mais quando voltou ao seu habitat natural na direita; 3) as derradeiras mexidas, já a pensar nas grandes penalidades, podiam ter mexido com o jogo muito antes caso envolvessem outros jogadores mais frescos que acrescentassem na manobra ofensiva.