894kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Astrakan 79: segredos em família

Que país encontra um adolescente fascinado pelos ideais comunistas nos confins da União Soviética? O mais recente filme de Catarina Mourão é um confronto entre a expectativa, realidade e memória.

O que surpreende em Astrakan 79 é de como o desencanto nunca o é realmente, como se aquela aventura, a que existe nos postais e na memória de Martim, se tivesse tornado com o tempo num capítulo fechado em forma de segredo
i

O que surpreende em Astrakan 79 é de como o desencanto nunca o é realmente, como se aquela aventura, a que existe nos postais e na memória de Martim, se tivesse tornado com o tempo num capítulo fechado em forma de segredo

O que surpreende em Astrakan 79 é de como o desencanto nunca o é realmente, como se aquela aventura, a que existe nos postais e na memória de Martim, se tivesse tornado com o tempo num capítulo fechado em forma de segredo

Ao longo das últimas duas décadas, Catarina Mourão tem construído uma filmografia em volta da memória familiar — a sua e não só — e de como se pode extrair daí a imagem de um país durante a ditadura. Astrakan 79 passa para o outro lado, o pós-revolução, os anos do PREC, e a estreia em cinema é acompanhada pela curta-metragem O Mar Enrola na Areia, cuja memória trabalhada ainda acontece durante o período do Estado Novo.

Por agora, centro em Astrakan 79, que valeu o prémio de Melhor Realização na edição de 2023 do IndieLisboa e que conta a história de Martim Santa Rita e, num nível paralelo, vai ao presente do filho, com quem partilha o nome. A história começa a ser contada a partir de postais que estão colados numa casa abandonada. Pelo voz-off percebe-se de imediato duas coisas: que Martim foi, como outros jovens portugueses após o 25 de Abril, estudar para a antiga União Soviética; e que o deslumbre promovido pela propaganda é progressivamente desmontado pela realidade.

Astrakan, localidade perto do Cazaquistão, é nome sonante que parece de super-herói. Dá uma sensação de glória cada vez que é mencionado, entre um sítio mítico e aquele onde os sonhos se irão realizar. Não é de estranhar que, em 1979, ano em que Martim vai para a União Soviética, esse espaço, que o próprio nem sabe bem onde é, nem que é tão longe, soe tão bem e como um sítio onde se quer estar para ir cumprir uma espécie de dever. Martim tinha quinze anos. Relembra-nos disso diversas vezes ao longo do filme.

[o trailer de “Astrakan 79”:]

Na primeira metade de Astrakan 79, Catarina Mourão mostra com equilíbrio e uma boa montagem essa ideia de sonho — ou expectativa — e a lenta desmaterialização dessa ideia. A informação vai surgindo nos detalhes, seja através dos postais, da narração ou mesmo do voz-off de Martim. Tanto se citam excertos dos postais como a descrição e reflexo de primeiras impressões de “um país grandioso que ainda está em evolução”, como se atira logo uma imagem, onde descrição se mistura com a memória de hoje, sobre a paisagem que Martim via do comboio, de horas e horas de casas iguais e neve, do ambiente, que também descreve um estado de espírito que nunca mudou ao longo daqueles três dias.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os pais de Martim eram do Partido Comunista. Martim foi para a União Soviética tão novo para cumprir um misto de sonho e dever. Em Astrakan apercebe-se logo de que é o único europeu entre africanos e sul-americanos. Também percebe que é muito mais novo do que os outros e omite com frequência a idade, dizendo que é mais velho, maior de idade. Os postais revelam um adolescente fascinado, mas com medo. Um adolescente longe da família que tenta viralizar em si mesmo o otimismo da campanha mas que é, com frequência, confrontado com o lado áspero da realidade: as aulas de história que não contavam a verdade — a que ouvia em Portugal — e optavam por propaganda comunista; a proibição de tirar fotografias; e o ambiente austero no geral, sobretudo na escola.

A esta ideia, um bom misto de reflexões, memórias e sensações, junta-se a narração da aventura. A escapadela no ano novo para Baku, no Azerbaijão, e a primeira bebedeira, a primeira paixoneta acompanhada pela descoberta da sexualidade, um aborto, o progressivo desinteresse em contar aos pais o que se passava e o primeiro amor, que resulta numa nova gravidez, e numa eventual fuga para Portugal, causa de uma sobrecarga emocional e de que a União Soviética idealizada era bem diferente daquela que encontrou.

Catarina Mourão tem construído uma filmografia em volta da memória familiar — a sua e não só — e de como se pode extrair daí a imagem de um país durante a ditadura

O que surpreende em Astrakan 79 é de como o desencanto nunca o é realmente, como se aquela aventura, a que existe nos postais e na memória de Martim, se tivesse tornado com o tempo num capítulo fechado em forma de segredo. O filme torna-se — também — importante porque é um veículo para o pai contar este momento da sua vida ao filho. O filho retribui com outro segredo. Um ato que coloca Astrakan 79 um passo à frente e a importância deste género de cinema, com a constante revelação de que não é só a memória passada ou, melhor, não é um exercício sobre uma memória edificada em cimento e amovível, mas sobre aquela que está em permanente mutação, consequência da autoanálise e de uma abertura para o presente. Podemos constantemente reavaliar os nossos atos. É isso que nos faz crescer.

A curta que antecede Astrakan 79, O Mar Enrola na Areia, vai ao arquivo familiar da realizadora e explora a presença de um homem que surgia na praia e brincava com as crianças durante o Estado Novo. São quase vinte minutos numa constante zona cinzenta, em parte porque as memórias das várias pessoas que relatam a presença do homem divergem, são por vezes contraditórias. Por vezes, sente-se pena, compaixão, pelo que se sabe da vida do senhor; por outro suspeita-se das suas reais intenções. A suspeita é voluntária, mas incontornável. Acaba por funcionar como um bom complemento a Astrakan 79 pelas diferentes sugestões de como explorar um arquivo, ligar os pontos e criar diferentes formas de narração. E da importância de trabalharmos este passado, o das famílias, os rastos de memória física e pessoal, para desmistificar a imagem de um outro tempo, de um outro país. Catarina Mourão continua a reinventar este género cinematográfico e, claro, a reinventar-se em cada filme.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.