Ao longo das últimas duas décadas, Catarina Mourão tem construído uma filmografia em volta da memória familiar — a sua e não só — e de como se pode extrair daí a imagem de um país durante a ditadura. Astrakan 79 passa para o outro lado, o pós-revolução, os anos do PREC, e a estreia em cinema é acompanhada pela curta-metragem O Mar Enrola na Areia, cuja memória trabalhada ainda acontece durante o período do Estado Novo.
Por agora, centro em Astrakan 79, que valeu o prémio de Melhor Realização na edição de 2023 do IndieLisboa e que conta a história de Martim Santa Rita e, num nível paralelo, vai ao presente do filho, com quem partilha o nome. A história começa a ser contada a partir de postais que estão colados numa casa abandonada. Pelo voz-off percebe-se de imediato duas coisas: que Martim foi, como outros jovens portugueses após o 25 de Abril, estudar para a antiga União Soviética; e que o deslumbre promovido pela propaganda é progressivamente desmontado pela realidade.
Astrakan, localidade perto do Cazaquistão, é nome sonante que parece de super-herói. Dá uma sensação de glória cada vez que é mencionado, entre um sítio mítico e aquele onde os sonhos se irão realizar. Não é de estranhar que, em 1979, ano em que Martim vai para a União Soviética, esse espaço, que o próprio nem sabe bem onde é, nem que é tão longe, soe tão bem e como um sítio onde se quer estar para ir cumprir uma espécie de dever. Martim tinha quinze anos. Relembra-nos disso diversas vezes ao longo do filme.
[o trailer de “Astrakan 79”:]
Na primeira metade de Astrakan 79, Catarina Mourão mostra com equilíbrio e uma boa montagem essa ideia de sonho — ou expectativa — e a lenta desmaterialização dessa ideia. A informação vai surgindo nos detalhes, seja através dos postais, da narração ou mesmo do voz-off de Martim. Tanto se citam excertos dos postais como a descrição e reflexo de primeiras impressões de “um país grandioso que ainda está em evolução”, como se atira logo uma imagem, onde descrição se mistura com a memória de hoje, sobre a paisagem que Martim via do comboio, de horas e horas de casas iguais e neve, do ambiente, que também descreve um estado de espírito que nunca mudou ao longo daqueles três dias.
Os pais de Martim eram do Partido Comunista. Martim foi para a União Soviética tão novo para cumprir um misto de sonho e dever. Em Astrakan apercebe-se logo de que é o único europeu entre africanos e sul-americanos. Também percebe que é muito mais novo do que os outros e omite com frequência a idade, dizendo que é mais velho, maior de idade. Os postais revelam um adolescente fascinado, mas com medo. Um adolescente longe da família que tenta viralizar em si mesmo o otimismo da campanha mas que é, com frequência, confrontado com o lado áspero da realidade: as aulas de história que não contavam a verdade — a que ouvia em Portugal — e optavam por propaganda comunista; a proibição de tirar fotografias; e o ambiente austero no geral, sobretudo na escola.
A esta ideia, um bom misto de reflexões, memórias e sensações, junta-se a narração da aventura. A escapadela no ano novo para Baku, no Azerbaijão, e a primeira bebedeira, a primeira paixoneta acompanhada pela descoberta da sexualidade, um aborto, o progressivo desinteresse em contar aos pais o que se passava e o primeiro amor, que resulta numa nova gravidez, e numa eventual fuga para Portugal, causa de uma sobrecarga emocional e de que a União Soviética idealizada era bem diferente daquela que encontrou.
O que surpreende em Astrakan 79 é de como o desencanto nunca o é realmente, como se aquela aventura, a que existe nos postais e na memória de Martim, se tivesse tornado com o tempo num capítulo fechado em forma de segredo. O filme torna-se — também — importante porque é um veículo para o pai contar este momento da sua vida ao filho. O filho retribui com outro segredo. Um ato que coloca Astrakan 79 um passo à frente e a importância deste género de cinema, com a constante revelação de que não é só a memória passada ou, melhor, não é um exercício sobre uma memória edificada em cimento e amovível, mas sobre aquela que está em permanente mutação, consequência da autoanálise e de uma abertura para o presente. Podemos constantemente reavaliar os nossos atos. É isso que nos faz crescer.
A curta que antecede Astrakan 79, O Mar Enrola na Areia, vai ao arquivo familiar da realizadora e explora a presença de um homem que surgia na praia e brincava com as crianças durante o Estado Novo. São quase vinte minutos numa constante zona cinzenta, em parte porque as memórias das várias pessoas que relatam a presença do homem divergem, são por vezes contraditórias. Por vezes, sente-se pena, compaixão, pelo que se sabe da vida do senhor; por outro suspeita-se das suas reais intenções. A suspeita é voluntária, mas incontornável. Acaba por funcionar como um bom complemento a Astrakan 79 pelas diferentes sugestões de como explorar um arquivo, ligar os pontos e criar diferentes formas de narração. E da importância de trabalharmos este passado, o das famílias, os rastos de memória física e pessoal, para desmistificar a imagem de um outro tempo, de um outro país. Catarina Mourão continua a reinventar este género cinematográfico e, claro, a reinventar-se em cada filme.