A DMZ, faixa desmilitarizada que separa a Coreia do Sul da Coreia do Norte desde 1953, é o sítio mais visitado de toda a península coreana. Todos os dias, centenas de autocarros de excursões despejam milhares de turistas na zona, completa com lojas de souvenires de gosto duvidoso e snack bars com preços inflacionados. Apesar do peso histórico e bélico do local (há que relembrar que a guerra entre Seoul e Pyongyang nunca acabou, apenas tem um acordo de armistício), muito depressa se instala um concurso não oficial de selfies e fotos para o Instagram com a descontração própria de quem está de férias.
Entre comboios com marcas de balas e muito arame farpado, existem estátuas de mulheres sentadas, com cadeiras vazias ao seu lado. Mesmo sem colher grande efeito, os guias lá vão avisando para não nos sentarmos nos tais lugares vagos ou para, no mínimo, não estarmos de sorriso largo nas fotografias. Aquelas mulheres ali sentadas não são o Mickey na Disneyland. São a representação de uma das feridas mais difíceis da invasão do império japonês à Coreia, até 1945: as chamadas “mulheres de conforto”.
Título: “Erva”
Autora: Keum Suk Gendry-Kim
Tradução: Yun Jung Im
Editora: Iguana
Páginas: 488
Mulheres de conforto é, apenas, um eufemismo para prostituição forçada. Durante mais de 10 anos, cerca de 200 mil mulheres (muitas delas crianças a partir dos 11 anos) foram vendidas ou raptadas e inseridas numa rede de escravidão sexual para “levantar a moral” do exército japonês que ocupava parte da península coreana e da China. Erva, a novela gráfica de Keum Suk Gendry-Kim escrita em 2017 e publicada por cá pela Iguana, conta a história verídica de Ok-Sun Lee, uma criança sul-coreana que, durante a Segunda Guerra Mundial, foi vendida pela família e explorada como mulher de conforto.
Erva retira o seu nome do facto de simbolizar, segundo a autora, “a resistência, uma forte vontade de viver e a vitalidade das mulheres que nasceram numa época trágica” e segue-se Em Portugal a A Espera, a saga igualmente real de uma família coreana separada, editada também pela chancela Iguana no fim de 2023. Foi traduzido diretamente do coreano para português por Yun Jung Im e é uma obra de peso até no sentido literal, já que tem 488 páginas. Em entrevista à Korean Literature Now, Gendry-Kim diz que “ouvir a história de Ok-sun foi difícil, criar algo baseado na dor de outra pessoa, mas havia mais do que isso. Ela viveu numa época tão difícil, sob a ocupação japonesa, nascida numa família desesperadamente pobre, então era uma situação difícil em todos os aspectos. E havia tantas outras como ela naquela geração, às vezes era esmagador. Quanto ao processo de trabalho, nenhum trabalho é concluído sem dor e solidão. Também foi fisicamente desafiador, porque trabalhei nisto durante muito tempo”.
Erva é uma obra dolorosa, muitas vezes aflitiva, na qual o desenho sabe bem o seu papel e como deve, de acordo com o ponto da história, representar o horror ou apenas subentendê-lo. É uma novela gráfica que usa apenas o preto e o branco, sem dar azo à cor de uma vida que não a teve — mas também sem apostar nos cinzentos, como que a dizer que muitas vezes não os houve sequer, metaforicamente, entre o bem e o mal. O relato das décadas de vida de Ok-Sun Lee, que já na velhice abraçou o ativismo e a exigência direta de um pedido de desculpas oficial do Japão, é pontuado por páginas e páginas de paisagens desertas, por vezes inóspitas, de uma existência sem ajuda e de uma profunda solidão.
As mulheres de conforto são de tal como um golpe profundo na relação problemática e magoada entre Coreia e Japão que os relatos de Ok-Sun Lee — que Keum Suk Gendry-Kim demorou muito tempo a conseguir captar num novelo de um sofrimento que parecia não ter fim — são um documento histórico raro, essencial e corajoso. O livro não se escuda a falar de tratamentos para a sífilis com mercúrio que tornavam as mulheres inférteis, de violações a menores ou de grávidas obrigadas à prática sexual quase até ao fim da gestação e depois imediatamente a seguir ao parto.
Erva é um livro que mostra como as novelas gráficas, especialmente neste registo biográfico, podem ser arte maior que merece, definitivamente, um reconhecimento que muitas vezes lhe escapa por puro preconceito de género. É uma obra ao nível de Maus ou de Persepolis, apenas possível pela coragem imensa da biografada e pela sensibilidade da autora.