Quando desce do palco para falar com os jornalistas, a atriz Margarida Vila-Nova enrosca-se na cadeira. O seu corpo pequeno e incrivelmente magro parece ter encolhido entre a luz fria da sala de tribunal que constitui o cenário para este monólogo de hora e meia. “Dois meses antes de iniciar os ensaios, comecei a correr para me preparar para esta maratona física e psicológica”, confessa em voz baixa e visivelmente cansada. É como se a personagem de Teresa e o respetivo destino sombrio não a tivesse abandonado, tal como não abandonou os espectadores e promete não abandonar a sociedade civil à qual se destina. À Primeira Vista ou Prima Facie, no original, é uma peça-denúncia sobre como a justiça trai as vitimas de violação, com uma lei feita por homens, para libertar os homens e punir as mulheres. Uma lei que sistematicamente ignora as ambiguidades, as subtilezas e está ancorada no principio de que a mulher que denuncia uma violação está a mentir. Suzie Miller, a autora do texto, advogada de defesa especializada em direitos humanos, não fez por menos e assume: “Esta é uma peça que quer chegar à esfera jurídica, mas também a toda a sociedade.”
À Primeira Vista estreou-se em Sydney, em 2019, mas foi em 2022, com a estreia no West End londrino, protagonizada pela atriz Jodie Comer — a famosa “Villanelle” da série Killing Eve — que a peça chegou ruidosamente ao espaço público. Meses de sessões esgotadas e uma parceria com o Schools Consent Project, mobilizou advogados, policias, alunos e ganhou múltiplos prémios, entre eles um Oliver para melhor peça e melhor atriz. Em 2023, a história de Tessa chegou à Broadway onde esteve sempre esgotada e deu à atriz um prémio Tony. Esta quarta-feira, dia 24, estreia-se no Maria Matos, em Lisboa, e constitui um esforço pessoal da atriz Margarida Vila-Nova em parceria com o encenador Tiago Guedes. Ambos reconhecem que o momento político e social que se vive em Portugal torna esta obra “uma urgência”.
Teresa/Tessa é uma jovem advogada brilhante a ascender no meio jurídico, é uma amazona a cavalgar casos atrás de casos, sempre a ganhar, imbuída por uma fé ingénua na justiça, e na aplicação da lei. Vem de um meio pobre, galgou etapas, deixou para trás uma família problemática, um pai agressivo, um irmão delinquente e uma mãe submissa que limpa escritórios. Ela não. Ela reina nos escritórios, com a sua toga, a sua capacidade de contra-interrogar, de siderar os arguidos, de levá-los à contradição e ao colapso. Aceita qualquer caso, sem questionar. É muito procurada por homens acusados de violação que passam a contar com a sua mestria retórica para os ilibar. Ela dirá que se limita a aplicar corretamente a lei. Suzie Miller, a autora, nas muitas entrevistas que já deu sobre a peça, nota que Tessa, como muitas mulheres, prefere ignorar as vítimas de violação como forma de não se confrontarem com as suas próprias histórias. “Em 2022”, diz-nos Margarida Vila-Nova, “uma em cada três mulheres já tinha sofrido qualquer tipo de abuso sexual, físico ou psicológico”. Números ainda mais esmagadores quando se sabe que menos de 2% dos acusados recebe qualquer condenação. “A lei está errada, é mal aplicada e reflete a sociedade que somos. É preciso que mulheres e homens se unam para mudar esta lei que retira a dignidade humana as vitimas”, afirma o encenador Tiago Guedes, ao Observador.
Quando a luz branca e fria ilumina o palco, aquilo que vemos são cadeiras divididas em dois grupos, alinhadas numa sala. Podia ser uma igreja, uma sala de aula, um teatro, mas é uma sala de julgamentos, um dos rituais sociais que mais traços guarda do passado, com as vestes negras, a coreografia dos advogados, a imobilidade dos réus ou arguidos. A opção dramatúrgica de Guedes é diferente das versões australiana, inglesa e americana. Como ele, explica, “quero colocar o público dentro de um tribunal, a assistir, dando liberdade para que cada um forme a sua opinião. Não quero fazer uma peça panfletária que acentue a guerra entre homens e mulheres. Esta questão não é sobre género, é sobre humanidade, é sobre direitos humanos.”
Quando entra em cena, Margarida, com uma já longa carreira na televisão, no cinema e, menos, no teatro, parece alta, nas suas roupas masculinas, o cabelo loiro brilha, salta, ela é Teresa, advogada nos tribunais, amiga de gente do topo da hierarquia social, todos lhe preveem um futuro brilhante. Ela move-se com agilidade nos seus vários papéis, a criminalista, a jovem mulher que gosta de sair e beber, que gosta de flirts, ou a filha crispada com a falta de ambição materna. Tudo corre depressa e a atriz desdobra-se num monólogo que é um diálogo incessante com as personagens imaginárias ao seu redor. Aguenta-se nas subtilezas, nas ínfimas variações entre um papel e outro, a secura nas audiências, os sussurros amorosos com o colega, advogado, que uma noite leva para casa naquele sonho romântico que é vendido às mulheres em séculos de cultura patriarcal. Mas o prelúdio de um romance com Francisco começa num gelado partilhado e acaba numa violação.
Onde procurar a verdade de uma violação?
Prima Facie, o titulo original, recupera uma expressão em latim usada pelos tribunais para definir se a prova é suficiente. Suzie Miller, que durante anos trabalhou com mulheres vítimas de “toda a espécie de coisas horríveis que um ser humano pode fazer a outro”, diz que esta história recupera e agrega muitas dessas histórias, e coloca a violação onde ela mais acontece: no espaço de intimidade, nos casamentos, nos namoros, nas famílias, nos amigos. “O que eu mais gosto nesta peça é que coloca a violação dentro de uma relação amorosa consentida, mostra como as fronteiras do consentimento, que ainda não foi percebido, as violações estão aparentemente carregadas de ambiguidades, mas no final só uma coisa tem que ser tida em conta: se alguém diz não, é não”,afirma o encenador Tiago Guedes.
A autora, australiana que ganhou fama mundial com esta peça, já tornada romance, afirma, numa entrevista coletiva, com a atriz Jodie Comer, ao The Guardian, que “esta é uma lei que interroga as vítimas, não interroga o crime. Porque é que a justiça quer saber o que a mulher tinha vestido, mas não usa câmaras de vídeo vigilância dos bares, por exemplo, para ver e analisar o comportamento do agressor? Porque não investiga o seu passado, mas o passado da mulher é escalpelizado?”
Quando decide ir à policia apresentar queixa do colega, Teresa assina a sua queda no abismo psicológico e social. O primeiro interrogatório a que responde é a si mesma e é aquele, que, ao longo dos milénios, todas as vítimas de abuso sexual descrevem: o que é que eu fiz de mal para isto acontecer? A partir daí, o colega, filho de um homem rico e poderoso, revela o que podem as armas invisíveis das classes sociais que nenhuma revolução anulou. Ele será a vítima, ela a mentirosa. Por uns será acusada de ser ambiciosa, de desejar ocupar o lugar dele, de ser manipuladora, por outros será vista como uma tonta que devia ter ficado calada, e outros ainda terão prazer em assistir à sua queda.
O cabelo perde o brilho, Teresa/Margarida já não salta, arrasta-se. Conhece enfim o outro lado dos tribunais, o outro lado da lei. Já não confia na força da sua palavra, nem sequer na sua memória Depois de 782 dias à espera, entra no tribunal, já não protegida pela toga da lei, mas como cabrito sacrificial de uma sociedade inteira. Desde logo porque, agora tem que passar pelo detetor de metais, tem que abrir a mala perante uma policia. Logo ali ela começa a ser novamente violada. A segunda parte da peça é penosa, dura, e sê-lo-á, certamente, mais ainda para todos os que já passaram por situação idêntica. Agora aquela mulher é uma corsa num tribunal cheio de homens, agora ela lembra-se de todas as mulheres que ajudou a destruir,e, a partir daqui ela perde a sua grande fé; a fé na justiça.
“Fui ver a peça a Londres, com uma amiga que trabalha com estas questões, sai de lá muito inquieta e a sentir a urgência de o teatro ser também um espaço de debate, de criação de debate sobre as questões do nosso tempo, ainda por cima uma questão que atravessa todas as épocas, classes sociais, faixas etárias. Resisti à ideia de fazer um monólogo, duvidei se seria capaz, mas depois quando o Tiago veio para o projeto e própria situação política e social que vivemos torna esta peça ainda mais atual, tive a certeza que estava no sitio certo”, explica Margarida Vila-Nova que, assume ainda, “gostaria que a peça gerasse debate público como aconteceu em Inglaterra”. Depois de meses em cena no West End e na Broadway, a peça foi filmada e está disponível no Youtube. Na Irlanda do Norte já se tornou obrigatória nos cursos de formação de juízes e em Inglaterra foram organizadas sessões de visualização com polícias, grupos de advogados e escolas.
À Primeira Vista, mais do que a história de uma mulher violada, é a história de como a justiça trata as vítimas de violação ou abuso sexual. No rescaldo do movimento #metoo, Suzie Miller confessa que “não esperava” que a peça tivesse tanta adesão, pois temia que o tema estivesse esgotado. Longe disso. depois da estreia em Sydney, um advogado famoso e um deputado foram acusados de abuso sexual e no Reino Unido as récitas coincidiram com o caso Amber Heard e Johnny Deep. A peça que impulsionou o teatro como motor social foi entretanto transformada em romance e as críticas não têm sido meigas. Está em curso a sua adaptação ao cinema.
Em Lisboa a peça estará no Teatro Maria Matos até 10 de agosto, de quinta a sábado às 21h009. Tem cerca de 1 hora e meia de duração.