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Tarrafal 1936-74: memória concentrada

Cuidado e sensibilidade visual assinaláveis para a lucidez editorial de João Pina na hora de construir um livro que é uma viagem visual (e familiar) pelo campo de concentração em Cabo Verde.

Guilherme da Costa Carvalho, o avô do autor, fotografado pelo pai, Luiz Alves de Carvalho, no Campo de Concentração do Tarrafal on the Tarrafal, em 1949
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Guilherme da Costa Carvalho, o avô do autor, fotografado pelo pai, Luiz Alves de Carvalho, no Campo de Concentração do Tarrafal on the Tarrafal, em 1949

Joao Pina

Guilherme da Costa Carvalho, o avô do autor, fotografado pelo pai, Luiz Alves de Carvalho, no Campo de Concentração do Tarrafal on the Tarrafal, em 1949

Joao Pina

João Pina (1980-) publicou em 2014, também com a Tinta da China, o foto-livro Condor, sobre a rede militar de extermínio de opositores políticos por cinco regimes totalitários da América Latina na década de 1970, da Argentina ao Chile, publicação essa com a qual criou o modelo ou o método de inquérito imagético e político — e também o padrão gráfico — que agora vemos nitidamente figurado neste Tarrafal, abordagem ao campo de prisioneiros políticos portugueses criado em 1936 na ilha de Santiago. Todavia, a brutalidade de um e de outro desses processos não é comparável, da mesma maneira que a vida nos presídios de Caxias, Peniche e Tarrafal não pode ser posta a par de formas de deportação política a que não faltou o amparo de serviçais à roda da mesa e roupa bem lavada e engomada em paradisíacas ilhas tropicais atlânticas em que resorts de luxo garantem hoje boa parte da economia do país tornado independente.

Como é sabido, o campo do Tarrafal foi destino fatal ou traumático para muitos opositores a Oliveira Salazar, dos anarquistas aos comunistas, até 1954, e após 1961-62, quando reabriu e foi ampliado, também para independentistas africanos. É, portanto, bastante oportuno este trabalho de João Pina no quadro da vasta campanha biblio-historiográfica que toma o pulso à Revolução de 1974 e ao que a procedeu — e da qual se destaca, diria, de forma quase monumental.

Quase monumental, não duvido e afirmo, porém exclusiva ou seletiva, porquanto o preço do livro — 75€ — não o torna acessível a quantos o possam querer ler, a menos que esteja disponível em muitas bibliotecas públicas, o que me parece muito improvável de acontecer. A pequenez das tiragens em Portugal encarece os livros, em particular os deste tipo e excelência gráfica (inatacável, de facto) e, além disso, nem sempre — ou raramente — os apoios obtidos beneficiam, como seria lícito, os leitores (preço mais baixo) quanto ajudam os editores (menor investimento e risco). Parece razoável pensar que a atual candidatura do Campo de Concentração do Tarrafal a Património Mundial da UNESCO — uma iniciativa do governo de Cabo Verde, com “forte parceria de Portugal, Angola e Guiné-Bissau”, como informou o Público a 1 de maio passado, p. 38 — promete ampla visibilidade a este livro, pelo que mais 1000 ou 2000 exemplares de tiragem representariam uma redução de talvez 20 ou 40 % do preço de capa.


Título: “Tarrafal”
Texto e fotografia: João Pina
Editor: Tinta da China
Design: GOST Books
Páginas: 284

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Teria sido possível, creio, dar a este Tarrafal bastante mais do que uma muito bem organizada promoção mediática (que teve, de facto), da mesma maneira que teria sido sensato — concedendo-lhes, já agora…, a tão sagrada liberdade — permitir a quem escreve sobre ele a escolha das imagens que julgue mais representativas, em vez de se facilitar um lote muito reduzido, comum a toda a imprensa, acenando de seguida para a aquisição de direitos de reprodução sobre quaisquer outras, assim fazendo a mais extensa tábua-rasa das condições em que hoje se faz jornalismo em Portugal e deixando em aberto o recurso a um degradante choradinho ao fotógrafo-autor (as palavras são minhas), o que jamais aconteceria, como é óbvio.

Pelo meu lado, devo dizer, teria gostado que este artigo fosse ilustrado, além de duas das disponíveis, das imagens Praia do Chão Bom (p. 56), Enfermaria (p. 164) e Tarrafal (p. 59), de modo a mostrar, sucessivamente, a contraditória beleza do sítio, a qualidade arquitetónica do campo prisional e, por fim, o seu atual estado de decadência ou degradação. Idealmente, teria ainda dois ou três dos retratos de grande dignidade que Pina fez de presos africanos em Santiago, em especial os de Gil Querido “Kid” Varela (p. 197) e Luís Fonseca (p. 186), dois cabo-verdianos, e o de Lote “Sachikuenda” Chivava, angolano (p. 202). Mas, adiante…

João Pina é neto de Guilherme da Costa Carvalho, militante comunista portuense preso em Peniche desde o verão de 1948 e que em setembro de 1949 foi transferido para o Tarrafal, onde permaneceu quase dois anos, voltando àquele presídio político hoje musealizado, em resultado duma aliança partidária de ocasião que custou milhões ao erário público e dele depende para o futuro. (Importa lembrar isto, várias décadas depois que algo pudesse ter sido feito nesse sentido.) Foi um claro privilégio social — não há outra maneira de o dizer — que, poucos meses depois daquela transferência, permitiu aos bisavôs do fotógrafo visitarem o seu filho na cadeira cabo-verdiana (o que fariam uma segunda vez, em maio de 1950), duas viagens de que resultaria — o que também parece inusual, atendendo às circunstâncias — uma série de retratos de presos, e sobretudo a evidência de sepulturas dos trinta e dois que não resistiram à malária, à tuberculose e as condições carcerárias sob clima tropical, o mais celebrado dos quais foi Bento Gonçalves, o secretário-geral do PCP ali falecido em setembro de 1942.

A entrada para o campo do Tarrafal, que foi usado pela ditadura portuguesa durante 35 anos, ainda que não consecutivos, entre 1936-1974

Joao Pina

Além disso, os bisavós de João Pina, Herculana e Luiz Carvalho, visitaram as famílias de outros presos, fotografando-as para eles, num gesto de solidariedade e compaixão que merece apreço e aplauso. Trata-se, em todo o caso, dum portefólio de c. 600 imagens (p. 75), que demorou meio século a ser trazido à luz. Quaisquer que tenham sido as circunstâncias desse esquecimento, meio século é demasiado tempo e o oportunismo desta revelação tão tardia tem algo de inusitado, por benéfica que ela seja e é. “Em todas estas imagens, sinto o imenso peso da história”, escreve João Pina na penúltima página do livro.

Foram esses documentos mantidos inéditos, com a correspondência trocada entre pai e filho, que permitiram a João Pina “transformar uma caixa de sapatos em memória histórica” (p. 284), neste livro habilmente construído, em que o autor escreve ao avô Guilherme — que não chegou a conhecer — e ao bisavô Luiz cartas em que admiração pessoal, work in progress e alguma política desenham gestos visando uma cumplicidade familiar dialogante:

Não queria deixar de assinalar o dia da democracia, e de lhe contar, com um misto de esperança e preocupação, que por estes lados continuamos a tentar que o mundo seja um pouco menos egoísta. Acredito que aqueles que, como nós, têm mais vantagens do que a maioria, têm também uma responsabilidade acrescida” (p. 38)

Mas também:

Ao contrário daquilo em que acreditaste, tu e os teus camaradas, o Homem Novo nunca vingou. […] Os explorados também continuaram a existir em todas as tentativas de socialismo que este nosso mundo já viu. O problema […] continua a ser o mesmo: há sempre quem tente tirar proveito da desgraça alheia” (p. 68)

Mais ainda:

A demora em assumir estes erros e a total incapacidade do  PCP para se adaptar à nova realidade [queda do Muro de Berlim, 1989] fizeram com que o meu pai [Joaquim Pina, 1952-2020] e muitos outros quadros importantes decidissem sair do teu Partido, por não terem encontrado forma de criar qualquer tipo de mudança interna. Pergunto-me qual teria sido a tua posição, se estivesses vivo” (p. 73).

João Pina é duma lucidez editorial a toda a prova quando alterna cartas suas com as do avô e do bisavô, para dar aos leitores o contexto pessoal, histórico e político em que tais comunicações tiveram lugar. A 11 de junho de 2021, por exemplo, reporta-se ao seu encontro com o pintor Júlio Pomar (1926-2018), com 89 anos, o único sobrevivente de “tantas pessoas que são mencionadas nas tuas cartas” (p. 81). “Visivelmente emocionado, lá me foi contando que se tinham conhecido no Porto e que foste tu o responsável por recrutá-lo para o PCP”. Pina encontra o pintor atendendo à encomenda dum retrato por um banqueiro, e deixa-nos esta observação pueril: “É muito bonito ver que […] as pessoas com valores humanistas sempre se conseguiram dar bem. A vida é complexa e nunca a preto-e-branco: um pintor “comunista” faz retratos para os donos do grande capital”  (desconhece, portanto, a importância decisiva de Manoel Vinhas como cliente e mecenas de Pomar, e ninguém foi a tempo de lha explicar).

A lavandaria no campo do Tarrafal

Um mês e meio depois, escreve a Luiz sobre o encontro, na Cidade da Praia, com Lilica Papacho Boal, a filha do principal comerciante da ilha de Santiago que se tornou dirigente do PAIGC e que o bisavô conhecera como jovem de 15 anos. É este o primeiro registo de visitas a antigos presos africanos no Tarrafal, alargando, e bem, ao contexto colonial a sua aproximação ao Campo. São depoimentos de homens hoje desencantados com o rumo dos seus países: Varela é “reticente quanto ao modelo de democracia em Cabo Verde” (p. 196); Mucuata responsabiliza o “sistema de corrupção generalizada implantado pelo MPLA” (p. 198), e “ao falar do pós-independência e da guerra civil, a voz de Sachikuenda enche-se de tristeza e os olhos ficam vazios” (p. 201).

Também João Pina, escrevendo de Nova Iorque, a 2 de outubro de 2023, ao seu avô Guilherme, deixa claras inquietações sobre liberdade, regime político e cidadania: “Apesar de vivermos há quase 50 anos em democracia, em que as pessoas podem votar e eleger os seus representantes, uma boa parte da população não se sente representada por este sistema; muitos nem sequer vão votar”, perguntando-lhe “sobre o que podemos fazer para não enegrecermos as nossas conceções neste panorama tão complexo», em que as pessoas reagem «com generalizações e cinismo” (p. 273). E numa última carta, referindo-se a Cabo Verde, “um lugar tão especial com tanta gente bonita a partilhar o pouco que tem. Saberás tu que, apesar de ser o país da morabeza, de gente hospitaleira, descontraída e amigável […], é até hoje um país pobre, devastado pela seca e, sobretudo, pela falta de oportunidades para os seus cidadãos, fazendo com que dois terços da população viva no estrangeiro?” (p. 283).

O balanço de 50 anos de liberdade e independência também passa, certamente, por aqui.

 
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