Enviado especial do Observador em Paris, França

Era quase como entrar uma outra realidade paralela que nada tinha a ver com o que se passara antes. Vamos por partes. A qualificação feminina na ginástica artística divide todas as atletas em cinco grupos, sendo que em cada um desses grupos estão quatro “equipas” de quatro, que podem ou não ser da mesma nacionalidade consoante estejam a lutar também por uma vaga na final das equipas. No grupo 1, esta manhã, a Arena Bercy estava praticamente cheia e entusiasmada. No grupo 2, cerca de 20/30 minutos depois, encontrava-se já a abarrotar e com um apoio fantástico. No grupo 3, aí, o ambiente começava a ser diferente. Razão? A maioria que estava a ver o grupo 1 esperava pelo grupo 2, o grupo 2 era aquele a que todos queriam assistir, o grupo 3 perdera razões para tamanho entusiasmo tendo em conta que Simone Biles terminara o apuramento.

Foi nesse grupo 3 que entrou Filipa Martins, representante nacional na modalidade pela terceira vez seguida em Jogos Olímpicos. A meia hora do início das provas, este monumento parisiense não teria mais de 1.000 pessoas em vez das cerca de 20.000 que ali estiveram uma hora e meia antes. No entanto, tudo o resto já estava lá. Os voluntários tinham aspirado todos os tapetes dos aparelhos com marcas de pó de talco, as cadeiras de espera tinham sido arrumadas, as mesas dos vários árbitros por especialidade estavam também preparadas. Era o momento de a ginasta nascida no Porto procurar o seu sonho. Afinal, a única coisa que muda de atleta para atleta é a dimensão do sonho. No caso de Filipa, o “sonho” passava por uma final.

Em Tóquio, a atleta do Acro Clube da Maia não andou longe do objetivo dentro de uma realidade repleta de extraterrestres que ou são as melhores ginastas da atualidade (ou de todos os tempos, como Biles) ou têm um aparelho em específico onde conseguem fazer a diferença. Nas paralelas assimétricas, Filipa Martins fez 14.300, o 17.º melhor registo (nos restantes fez 13.466 no cavalo, 11.866 na trave e 12.666 no solo, o que deu no final a 43.ª posição no apuramento para o all around). Agora, aos 28 anos e com uma série de lesões pelo meio, não seria fácil fazer melhor. Esse era o desafio, sendo que melhorar o 37.º lugar do Rio-2016 também surgia como um grande resultado, para uma atleta que teve na chegada a Paris um primeiro triunfo.

Hoje, mais madura e experiente, Filipa Martins foi fazendo uma espécie de damage control ao longo dos últimos meses. “Torturada” por lesões que tiveram por exemplo em cinco cirurgias aos tornozelos, a atleta nacional manteve a resiliência do costume para ir à luta. Todos os dias, dia após dia. Umas manhãs pior, outras manhãs melhor, sempre a gerir um corpo que tem marcas muito menos invisíveis mas que se sentem. Agora, entrar na Arena Bercy era quase uma recompensa para uma carreira sem paralelo na ginástica do país com pontos altos como o sétimo lugar no all around e o oitavo nas paralelas assimétricas dos Mundiais de 2021 ou o pódio na Taça do Mundo de Cottbus em 2023. Mais: conseguiu marcar um movimento com o seu nome, o “Martins”, ao mesmo tempo que mantinha a alta competição e os estudos, estando agora também a fazer um mestrado em Rendimento Desportivo e Performance na Universidade do Porto.

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O currículo era a melhor medalha, a chegada a Paris o melhor destino para a “consagração” de uma carreira onde teve de superar vários obstáculos. E já com a Arena Bercy muito mais composta, começou a escrever uma história que seria confirmada umas horas depois: chegou pela primeira vez a uma final all-around.

O início dificilmente poderia ter sido melhor. Parecia estar escrito naquela entrada plenamente decidida, já de maillot sem qualquer peça de fato de treino e a liderar um grupo com várias nacionalidades onde estavam ainda Ok An Chang (Coreia do Norte), Hillary Heron (Panamá) e Luísa Blanco (Colômbia). Muito apoio nas bancadas com bandeiras de Portugal e o nome entoado de forma audível em alguns focos distribuídos pelo recinto, uma primeiro salto de aquecimento que não passou disso mesmo, uma tentativa que mostrou como a idade também pode trazer outra maturidade: com um salto “limpo”, tecnicamente a cumprir o proposto e que arrancou muitos aplausos nas bancadas, Filipa Martins fez 14.133 no cavalo, muito acima do que tinha feito no Rio-2016 (13.366) e em Tóquio-2o20 (13.466). Estava dado o mote para uma boa competição.

Seguiam-se as paralelas assimétricas, à partida a prova onde a portuguesa poderia ter mais hipóteses de aproximar-se pelo menos de uma final olímpica (algo que, no final do grupo 2, percebia-se que seria muito difícil Simone Biles alcançar, tal como acontecera no Rio-2016). E, sendo a última a fazer o exercício, fosse pela forma como tecnicamente parecia bem perante aquilo a que se propunha, pela forma como o público reagiu à saída quase perfeita e pela maneira como as outras atletas foram saudá-la no final, parecia que podia ir longe. Não foi. Quando olhou para o quadro no teto do pavilhão e viu que tinha apenas 13.800, ficou logo agastada. Pensava que podia ter mais, como em Tóquio, tinha consciência de que foi na sua praia que se tinha “afogado” com alguns deslizes. Sobrava a hipótese de ir ao all around. E agarrou-se com tudo a isso.

O próximo desafio seria a trave, o primeiro de dois aparelhos mais voláteis em termos de notas ao longo da carreira. Podia ser melhor, podia ser pior, aqui teria de ser acima de tudo isso nas duas para outra vitória dentro dessa vitória certa que era estar nos Jogos. Não aconteceu e os 12.600 pontos na trave, acima de Tóquio mas muito abaixo do que fizera no Rio de Janeiro, acabaram por condicionar e muito essa hipótese. Sobrava apenas o exercício no solo, naquela que seria uma possível despedida não só de Paris-2024 mas também dos Jogos Olímpicos, com Filipa Martins a terminar com 12.633 pontos a quarta rotação.

“Ainda estou um pouco emocionada porque fizemos algo que nunca imaginámos fazer na vida e na ginástica portuguesa. Superámo-nos a todos os níveis e estou muito orgulhosa do nosso trabalho. Meu, da Joana Ferreirinha e de todos aqueles que treinam connosco diariamente. Sorrisos no final? Estava quase a chorar, tentei conter-me mas na altura estava difícil de respirar na altura. Estou muito orgulhosa do que fizemos e podemos sonhar. Algumas coisas podíamos ter feito melhor. Salto inicial? Estou a treiná-lo desde 2014 ou 2015 só que é tão arriscado que temos sempre medo de colocar em competição. Não tenho palavras… Tanto eu como o meu treinador estávamos com medo mas superar isso foi positivo”, começou por dizer a atleta na zona mista depois do final do grupo 3, já. depois de ouvir a mensagem da mãe no telefone.

“Nas assimétricas foi a melhor nota que tive este ano mas senti que podia ter feito um bocadinho melhor. A nota até achei que foi boa para aquilo que eu fiz, acho que fiz provas melhores mas com nota mais baixa. A trave foi como no Rio de Janeiro, fui a última e tive de ficar à espera… Podia ter feito mais algumas ligações mas o importante era não cair, fazer tudo um pouco mais seguro. Espera? Agora é aproveitar com a família, com os portugueses nas bancadas que parecia que estava em casa. O que vier, será ótimo. Em Jogos nunca estive numa final mas histórico para mim foi o duplo salto. Vai ajudar todos no futuro, são precisos muito mais. Estamos a crescer muito mas continuamos sem grandes apoios. Por isso, quero agradecer a quem me ajudou, até a nível privado, e a todos os que ajudam”, acrescentou. Umas horas depois, apesar de todas as dificuldades que foi enfrentando em todo este percurso, tudo passou a fazer mais sentido.