Enviado especial do Observador em Paris, França

É um dos aspetos mais cruéis entre toda a festa dos Jogos, é também um dos pontos inevitáveis em qualquer edição dos Jogos. O ciclo olímpico até foi mais pequeno para Paris-2024 depois do adiamento por um ano da edição de Tóquio pela pandemia da Covid-19, mas neste caso são três anos que podem acabar em 25 ou 50 segundos na natação, pouco mais de dez no atletismo ou ainda menos por um erro no aparelho da ginástica. O judo não é diferente, claro. Um combate feminino tem quatro minutos até entrar em golden score, pode vir a demorar bem mais contando com as paragens, mas também pode ficar resolvido em menos de um minuto. Mais concretamente 45 segundos. Foi isso que aconteceu com a brasileira Natasha Ferreira em -48kg.

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Ambição não lhe faltava. Aliás, a ambição era tanta que acreditava ser possível mesmo ganhar uma medalha apesar de ter como melhor resultado em Mundiais um sétimo lugar na edição deste ano e um pódio com bronze no World Tour em Israel no ano passado entre cinco passagens pelas repescagens. No entanto, logo no primeiro combate com a favorita Natsumi Tusnoda, quarta do ranking mundial, todos os sonhos caíram por terra. Todos para já, claro. Houve um sonho que se cumpriu em Paris e foi ao falar desse que Natasha Ferreira, 26.ª na categoria da portuguesa Catarina Costa (que caiu na segunda ronda), esboçou um sorriso depois de alguns minutos de lágrimas nos olhos por ter caído tão cedo de Paris-2024.

Natasha teve de assumir uma decisão de vida apenas com 18 anos. Uma decisão que não devia tomar, uma decisão que teve de tomar. Hoje, sete anos depois, foi a decisão de uma vida que lhe melhorou a vida.

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A irmã mais velha de Natasha, que sempre foi a grande inspiração e referência até para a entrada no judo na escolha, como explicou num artigo escrito na primeira pessoa no UOL, experimentou drogas pela primeira vez em festas com 15 anos e tornou-se dependente química. Engravidou. Ainda conseguiu estar “limpa” um ano, teve outra recaída. A família tinha de encontrar uma solução para o problema que só piorava, a ponto de ser ter esquecido dele na escola. Como o irmão mais novo tinha apenas 15 anos na altura, a judoca, que tinha acabado de entrar para o primeiro ano de Psicologia na faculdade, assumiu o sobrinho aos 18 anos. 

“Ser tia é muito legal. Madrinha, então, mais divertido ainda. Levas a criança a brincar, a comer besteira, deixa-se sujar. Dá amor, dá carinho, e, no fim do dia, ela volta para casa dela. Não é sua responsabilidade acordar com ela no outro dia, preocupar-se com a alimentação correta, com a educação. Sair do papel de tia e entrar no de mãe, aos 18 anos, com uma carreira no desporto pela frente, foi o maior desafio da minha vida. Maior até do que o meu atual: qualificar-me para os Jogos Olímpicos”, contara num artigo no UOL.

“Era a madrinha, já tinha uma relação próxima, não tive outra saída. Hoje o Enzo tem duas mães. Vive comigo e visita a minha irmã de vez em quando, em casa da minha mãe, quando ela consegue passar uns dias limpa. A maior parte do tempo, porém, ela vive na rua. Se faria tudo de novo? Claro que eu faria. Não me arrependo de nada. Daria minha vida pelo Enzo. Mas não foi fácil. Eu e o meu companheiro de então não tínhamos qualquer estabilidade. Estava no primeiro ano de faculdade, morávamos com meus sogros. O Enzo tinha um chiqueirinho, que de noite servia como cama. Apertámos as nossas roupas para que sobrasse um espaço para as roupinhas dele. Ele chorava muito e eu não sabia como lidar com uma criança praticamente 24 horas por dia. Eu também chorava muito, porque na minha cabeça aquilo não era justo, sabe? Eu sempre cuidei de mim exatamente para não ter um filho”, acrescentou recordando o início do processo

Para Natasha, e apesar de Enzo ter chegado com um ano e meio, só mesmo quando a criança fez dois anos é que a judoca se começou a sentir mãe do sobrinho. Sem ninguém lhe ter dito nada, começou a tratar a tia por mãe. Apesar de ter recebido algumas propostas do Brasil e do estrangeiro, nunca aceitou sair de Curitiba por causa de Enzo que, ainda antes dos Jogos, tinha um fascínio particular por Paris. Foi isso que se concretizou. e “a única pessoa pela qual daria a vida” viajou mesmo para França, assistindo ao combate da “mãe”.

“Para mim foi a realização de um sonho mas, infelizmente…”, começou a dizer na zona mista, de lágrimas nos olhos quase a caírem pela cara. “Não concretizámos o maior sonho de todos, que era ganhar uma medalha. Isto são Jogos Olímpicos. Sabia que iria sempre apanhar uma adversária que podia ter um lugar melhor ou muito melhor do que eu na categoria mas nem assim eu deixei de sonhar com uma medalha, nem quando saiu o sorteio. Três anos de trabalho acabaram num minuto? Não, não acabou. Isto é só uma competição, mesmo sendo os Jogos, e há uma estrada grande pela frente. Não foi um desperdício, longe disso. Representa a concretização de sonhos e mesmo triste sei que isto não é o fim”, contou ao Observador.

“Consegui encontrar-me com ele antes do combate, há dois dias. Foi uma grande alegria e ele estar cá neste pavilhão é uma coisa muito boa. Só poder sair daqui mesmo acabando de perder, ir ter com ele e receber aquele abraço dele é o melhor conforto que posso ter neste momento. Assim vale a pena”, reforçou.