Enviado especial do Observador em Paris, França

Ia acontecer. Tinha de acontecer. Estava escrito que não havia forma de não acontecer. Igor Sampaio, irmão de Patrícia, fez um pouco de tudo numa bancada mais próxima do recinto no combate contra Alice Bellandi, número 1 do mundo e futura campeã olímpica. É quase como a italiana, que é uma das amigas mais próximas da portuguesa no circuito, tivesse encontra uma fórmula para bater Patrícia Sampaio que parece não perder validade e já rendeu no total oito triunfos. No entanto, foi também aí, depois daquele abraço com a atleta transalpina que lhe disse ao ouvido na conversa que a medalha de bronze podia ser sua, que começou um dia ainda mais histórico. A forma como encarou essa derrota foi o início da maior das vitórias.

Parece um chavão, não é. Patrícia Sampaio ainda teve aquela expressão de desalento quando todos aqueles 240 segundos de combate se tinham esgotado sem que o waza-ari da italiana fosse invertido mas de forma muito rápida recuperou a cara que foi a imagem de marca ao longo desta quinta-feira. Focada, determinada, compenetrada, motivada. Se a linguagem corporal falasse, gritava sucesso. Rika Takayama até poderia ser a quarta top 10 do ranking mundial de um dia longo mas que talvez pudesse ser melhor se não houvesse uma paragem, aquele triunfo tinha de ficar para ela. Ficou. Telma Monteiro, na posição onde estava antes Igor Sampaio, foi a primeira a saltar quando percebeu o segundo waza-ari mais rápido do que todos os outros. Depois dela (Rio-2016), de Nuno Delgado (Sidney-2000) e de Jorge Fonseca (Tóquio-2020), o judo nacional conquistava a sua quarta medalha na história nos Jogos Olímpicos, mais uma vez de bronze.

Numa primeira instância, Patrícia Sampaio quis apenas viver o momento. Sentir o momento. Perceber o momento. Só depois desse momento é que foi abraçar Marco Morais num momento de consagração, de uma enorme alegria mas também de reconhecimento. Seguiu-se o abraço geral a toda a família e apoiantes que estavam na bancada, a começar pelo irmão Igor, que quando deixou que a irmã fosse engolida por todos os outros num abraço comum fez questão de ter um cumprimento caloroso com o selecionador. Se Patrícia chegou a Paris como um projeto de vitória, o bronze tornou-se ouro para a coroação de uma das judocas mais talentosas e de futuro do panorama nacional e que representa o futuro a par de Catarina Costa.

“O que me vai na cabeça… Neste momento não me parece ainda real, só quando puser a medalha ao peito, quando tocar, quando lhe der uma dentada é que realmente percebo que é minha. Tudo parece um sonho e era um sonho… Realizado? Sim, parece que sim…”, começou por dizer na primeira passagem pela zona mista, ainda tolhida pelas emoções de quem sabe que alcançou histórico mas ainda não estava a sentir a dimensão do feito alcançado. “Estava muito decidida a manter o foco, a manter a determinação, independentemente do que acontecesse. Também tinha sempre o Marco [Morais, selecionador] ao meu lado a lembrar-me disso, mesmo quando perdi a meia-final não deixei que isso me afetasse. Saí do combate, levantei a cabeça, pensei que ia para outro e isso foi muito importante mesmo quando ganhei à francesa e à outra cabeça de série. Nada me afetou porque hoje estava a lutar comigo mesmo, não importava a cara”, destacou.

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“A luta era comigo. Fechava os olhos e não ouvia o público francês a gritar contra mim, nada. Era só eu e as tarefas que tinha para fazer. Na paragem foi uma luta entre descansar, controlar a ansiedade, depois também não posso desligar totalmente porque é o mesmo dia e tenho de manter a atitude com que estava… É um bocado complicado, tentei descansar, virava-me para um lado e para o outro mas não conseguia dormir mas consegui repousar um bocado e manter os meus níveis de energia altos. Fiz também um bom aquecimento. O Marco dizia-me que tinha havido um intervalo muito grande, talvez três horas, e era um dia novo, com um novo aquecimento para novos combates sem importar o que estava para trás. Foquei-me nisso”, atirou, antes de recordar também o facto de ter feito história pela modesta Sociedade Filarmónica Gualdim Pais.

“É muito especial. Já tinha sido muito especial em Tóquio ter sido a primeira atleta olímpica a representar um clube de Tomar, só isso já foi histórico para a cidade de Tomar. Agora foi histórico para a cidade e para o país. Gosto muito do sítio onde moro, do clube onde estou. Vou tentando treinar fora no estrangeiro, ajuda de treinadores estrangeiros ou nacionais. Sou um pouco disso tudo mas tenho muito amor à camisola e muito amor ao meu clube e muito orgulho em representá-lo. Somos poucos mas somos como uma família e todos se juntaram para me ver num ecrã grande, a sofrer de longe. É muito importante para mim porque estou num ambiente pequeno e acolhedor, sinto-me em casa… Para mim, para o meu sucesso e para a minha preparação é importante porque estou na minha zona de conforto”, reforçou na zona mista após o combate.

“Ouvi algumas coisas mas de fora ouvi muito pouco. Nem mesmo o Marco às vezes ouço, leio os lábios e tento ver os gestos com as mãos. Às vezes com aquela barulheira toda é difícil conseguir focar numa voz, prefiro que seja assim: ele está perto, eu tenho confiança no que ele está a dizer, olho e às vezes é só um fixe ou um continua, é só a linguagem gestual. Mas sim consegui às vezes ouvir o meu irmão. As minhas companheiras, a Catarina e a Telma? Sim, também ouvi… Entrar numa lista restrita é gratificante mas o desejo é que essa lista seja cada vez maior, com o meu nome mais vezes e o de mais colegas meus. Amanhã ainda teremos a Rochele, que tem oportunidade de lutar por mais uma medalha, daqui a quatro anos temos novos Jogos Olímpicos e eu quero que uma medalha não seja uma surpresa porque temos uma equipa boa. Podemos tornar isso uma constante porque temos valor para isso”, enfatizou em relação ao futuro.

“Último combate? Já nos tínhamos defrontado duas vezes, estava uma vitória para cada, sabia que ia ser um combate mentalmente muito intenso que tinha de ler bem a estratégia. Ela é muito perigosa no chão e tentei fugir ao máximo de trabalho no chão. Sabia bem a estratégia que deveria ter, apesar de não ser algo linear e perfeito, mas sabia o que tinha de fazer. Quando marquei o primeiro waza-ari ficou aqui um misto de emoções porque havia a ansiedade de querer projetar de novo, de saber que ela estava a vir cada vez mais para cima e tinha de segurar a vantagem e marcar mais uma vantagem. Como eu tenho um estilo de judo mais ofensivo, era continuar a atacar porque a melhor defesa é o ataque, apesar de nem sempre dar certo. Foi isso que me salvou”, concluiu após sete minutos antes de ser chamada para a cerimónia do pódio.

Aí, Patrícia Sampaio não perdeu a compostura. De fato de treino da seleção, parecia quase como se aquele foco ainda não tivesse desligado do chip que trazia para vir buscar a medalha. Depois, a ficha caiu. Quando foi chamada para subir à terceira posição com a chinesa Zhenzhao Ma, que batera de manhã, a emoção apoderou-se da judoca de -78kg. Colocou as mãos na cara, emocionou-se, percebeu onde estava e partilhou o que tinha feito com os muitos adeptos com bandeiras nacionais que iam gritando o seu nome. Um coração, beijos para o público, o hino italiano pela vitória da número 1 mundial, um “desfile” onde já estava a Patrícia Sampaio que devia estar. Descontraída, sorridente, sempre cúmplice com a amiga Alice Bellandi, a tirar um sem número de fotografias. Agora sim, era realidade. E foi aí que voltou a passar pela zona mista.

Antes de sair para a parte protocolar, tínhamos perguntado a Patrícia Sampaio, que estuda jornalismo e um dia estará deste lado (depois de hoje, alguém consegue dizer que coloca uma coisa na cabeça e não cumpre?), que título daria a todo este percurso. “Ai… A criatividade agora depois deste dia… Não estava à espera disso agora…”, atirou entre sorriso. Não faz mal, próxima questão: o que disse Bellandi após as meias?

“Sim, disse que era o nosso momento para irmos buscar o que era nosso, que no meu caso era o bronze. Nós somos duas adversárias que nos conhecemos muito bem mas que fora do tapete somos muito amigas, daí o momento mais emotivo porque temos essa amizade. Eu acho isso fantástico porque torcemos uma pela outra mas depois claro que quando nos defrontamos cada uma quer ganhar e essa é uma das maiores belezas do judo. Depois torcemos uma pela outra. Aquele combate deu para ela mas sei que ela quer o melhor para mim e eu quero o melhor para ela. Ligação ao clube e à cidade? Tomar é onde nasci, são as minhas raízes, a minha família está lá, foi o clube que sempre representei, o meu irmão é treinador há 11 anos… Sou uma pessoa muito emocional e muito emotiva e tenho essa ligação forte. Acho que essa parte emocional ajuda-me nestes momentos difíceis e gosto de me manter fiel aquilo que eu sou. É um momento especial e é por isso que considero uma família”, voltou a reforçar Patrícia Sampaio, que ainda iria à conferência.

Uma última tentativa, agora de escolha múltipla: tinha sido o dia em que Patrícia tinha colocado Tomas nas bocas do mundo ou o dia em que todos os sacrifícios valeram a pena? “Bem, há uma frase que li uma vez de alguém que é uma das minhas inspirações, que é bicampeã olímpica, que é a Kayla Harrison… ‘Pain, sweat, blood and tears, you wonder if it’s worth it? It is‘. Hoje é esse o dia, o suor, o sangue as lágrimas que derramei… Eu acreditava que valia a pena, hoje tive a confirmação”. Aqui está o título. “Não importa quão estreito seja o portão/Quão carregado de castigos é o pergaminho/Eu sou o mestre do meu destino/Eu sou o capitão da minha alma”, diz o final do poema Invictus, de William Ernest Henley, que a judoca também tem como uma espécie de mandamento. Podia ser um bom final mas, como ao longo do resto do dia, o preferível mesmo era ter Patrícia Sampaio a escrever e dizer aquela que achava melhor após conquistar o seu destino.