Enviado especial do Observador em Paris, França

Hoje, quando olhamos com atenção para Simone Biles, é fácil perceber que ali está alguém que se encontrou consigo mesma. Também tem os momentos em que a tensão e a ansiedade sobem, também tem os momentos em que fica nervosa antes de entrar em ação (como admitiu ter acontecido na trave, no concurso all-around) mas quando chega a hora da verdade, Simone controla Simone. Depois, Simone vê Simone ganhar. Uma, duas, agora a terceira. Se em Tóquio andavam todos a olhar para o então Twitter à espera que saísse uma decisão sobre a participação ou não em todas as finais de aparelhos para as quais estava qualificada, em Paris começou a tornar-se uma pro forma haver prova antes da consagração. Mais uma, agora no cavalo.

Já houve momentos em que a cara da pequena grande norte-americana era o espelho da alta tensão antes de uma prova. Na qualificação, por exemplo, depois de ter feito o melhor exercício na trave nestes Jogos, sentiu de novo o gémeo da perna esquerda, foi ligada, cometeu ligeiros erros no solo, estagnou quando passou pelo cavalo. Se a Arena Bercy se tornou uma zona de conforto para o corpo, aquele aparelho em específico é uma fonte de rejuvenescimento para a alma. Desde que está em França, nem sempre foi assim. Diferença? Com ajuda da terapia, que continua a fazer durante as manhãs, esconde todos os fantasmas para que a única adversária capaz de derrotá-la continue sem aparecer em competição: a desconfiança nela própria.

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Simone Biles partilhou um vídeo no Tik Tok, na preparação para a final all-around, onde abriu o livro a esse propósito. “Estou mesmo muito nervosa mas é uma coisa que acho normal. Fiz terapia esta manhã e comecei logo a sentir-me um bocado melhor. Trabalhei mesmo muito, a nível mental, para chegar a este momento”, confessou. De seguida, falou do que correu mal na Aldeia Olímpica. “Não tenho andado a dar muitas voltas na Aldeia porque no primeiro dia em que chegámos e foi à cafetaria imensa gente começou a pedir-me fotografias, sem parar. Sempre que me sentava para comer a minha ansiedade era tal que estava a tremer. Só consegui encontrar-me com uma amiga na cafetaria cinco dias depois”, confidenciou no vídeo.

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Quando chega à competição, tudo isso desaparece. Cá fora, aqueles de qualquer altura que olham sempre para cima quando um ser cada vez menos humano de 1,42 metros entra na sala falam de tudo sobre ela. Do vestido (que voltou a dar nas vistas, com 3.600 cristais num vermelho escolhido por ser uma cor com força, de acordo com a própria) à “farpa” deixada à antiga companheira MyKayla Skinner depois das afirmações que teve após os Jogos de Tóquio para a equipa feminina norte-americana, passando pelo mais recente caso da frase “Adoro o meu emprego de negra” escrita no X que terá tido como destinatário Donald Trump, ex-presidente e candidato republicano à liderança dos EUA, em resposta à ideia partilhada no debate com o então candidato Joe Biden de que os imigrantes ilegais no país estão a ficar com os “empregos dos negros”. Lá dentro, é ela, Ela e só ela – quanto muito, contra ela. E ela ganhou, como não podia deixar de ser.

Há uma explicação do The Athletic que aproveitamos para dar uma “quantidade” ao que é apenas qualidade. “Os resultados E começam no 10.0 para cada ginasta e depois vão descendo de acordo com as deduções que são feitas pelos juízes. Os resultados D não têm valor máximo, quando mais difícil seja a rotina, mais alta é a pontuação. A um nível de elite, a maioria dos resultados D são entre os 5 os 7, os resultados E rondam os 8.00 se forem bons e 9.00 ou mais se forem excelentes. Por norma, os resultados no cavalo são maiores do que nos outros eventos. Um resultados de 15.000 ou mais alto é excecional”. Biles foi acima disso.

Quarta a entrar na final, quando era a norte-coreana Chang Ok An que estava frente (uma atleta que passou a fase de aquecimento no banco a olhar para a campeã olímpica como mais uma fã procurando inspiração), Simone recorreu ao “Biles II”, um dos cinco movimentos que tem marcados com o seu nome, para começar com 15.700 e ficar com a média de 15.300 após um 14.900 na segunda tentativa. Assim parece fácil, vendo ainda mais: Simone Biles subiu ao tapete depois de dois erros da canadiana Shallon Olsen, respirou fundo, correu, fez o movimento que queria, saiu a sorrir com o treinador Laurent Landi de braços no ar a olhar para a frente e para a bancada antes de abraçar a atleta. Em dez segundos, sabiam que estava “arrumado”.

A brasileira Rebeca Andrade, que após a prova diria que vai deixar de fazer finais de aparelhos em Jogos por. não ter mais nada a mostrar ou provar, fez duas tentativas fantásticas a 15.1000 e 14.833 mas não conseguia mais do que ser a primeira humana para a medalha de prata (14.966). Faltava apenas atribuir o bronze, com Jade Carey, a outra norte-americana na decisão, a conseguir mostrar aquilo que realmente vale como não tinha acontecido no dia da qualificação e a terminar com 14.666 à frente da norte-coreana. Mais um triunfo, o sétimo ouro em Jogos Olímpicos e a possibilidade de voltar a tirar do saco o colar de G.O.A.T. que deu nas vistas após o triunfo no all-around. “É uma espécie de ode porque algumas pessoas amam e outras odeiam, é o melhor de dois mundos”, explicou. E por este andar não será a última vez que usará em Paris.