Enviado especial do Observador em Paris, França

As condições foram disponibilizadas, os astros foram alinhados, a conjugação cósmica chegou de uma forma quase natural. Ainda antes da cerimónia de abertura, os franceses estavam sobretudo preocupados (e é um termo simpático) com aquilo que era a tentativa de fazer história ao longo do rio Sena sem problemas ligados a segurança e com um espectáculo de quatro horas onde Paris se queria apresentar mais a si mesma do que propriamente os atletas e os Jogos. Conseguiu. Choveu muito, houve demasiada confusão entre estradas e estações de metro cortadas mas o resultado final valeu a pena. A partir daí, saltava de imediato para o topo das prioridades o sonho gaulês de ficar no top 5 dos países mais medalhados. E tudo foi correndo bem.

Nem tudo foi perfeito. A seleção feminina de futebol foi eliminada pelo Brasil nos quartos, o dia no judo com Patrícia Sampaio terminou para os dois judocas gauleses, ambos apontados ao pódio, eliminados logo na fase inicial. No entanto, essas foram exceções, não regras. Não é preciso ir muito longe: este domingo, em mais um daqueles fenómenos que parecem acontecer porque estamos em França, Félix Lebrun ganhou o bronze no ténis de mesa, naquela que foi a primeira medalha gaulesa desde 1992 nos Jogos. Nesta altura, só mesmo os EUA têm mais medalhas (64-42, com 41 para a China no momento em que vamos escrevendo este texto) e também só os norte-americanos e os chineses ganharam mais ouros (18 e 14 para 12). A diferença podia ser menor mas uma daquelas vitórias que pareciam há muito escritas acabou por cair para a Argélia.

Neste texto falamos de alguém que tem apenas 17 anos mas já com muita vida para contar. Como qualquer rapariga da sua idade, tem os seus hobbies. Adora desenhar, gosta de ir às compras, tem também o costume de desafiar-se na cozinha. A par disso, é uma das ginastas com maior futuro nos próximos anos e ganhou o primeiro título olímpico nas paralelas assimétricas depois da frustração bem visível de ter falhado o pódio no concurso do all-around, ficando na cadeira sem querer acreditar no sucedido depois de ver as notas no solo de Simone Biles, Rebeca Andrade e Sunisa Lee, todas na sua série na decisão na Arena Bercy. Mais: a irmã mais velha e a irmão mais nova estiveram também a apoiá-la… e representam a seleção de França.

Como se foi escrevendo na antecâmara da competição, havia quase uma sensação de karma no ar com esta possibilidade confirmada de vitória de Kaylia Nemour, até pela eliminação precoce da equipa feminina das gaulesas na qualificação com Melanie de Jesus dos Santos, filha de pai português e mãe da Martinica, a falhar todas as finais dos aparelhos. Se em todas as modalidades há bandeiras gaulesas a apoiar um atleta da casa, na ginástica feminina esse efeito organizador acabou por diluir-se numa má tarde. Podia não ser assim, caso a agora argelina se tivesse mantido entre as opções francesas e não tivesse quase “rescindido” com o país.

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Como aconteceu? Aquilo que hoje os franceses escrevem ser uma “guerra tonta”. Em 2021, a Federação Francesa de Ginástica decidiu que todas as atletas da seleção deveriam concentrar-se num de dois pontos: o Centro de Alto Rendimento de Paris ou o Centro de Ginástica de Saint-Étienne. Kaylia recusou. Dizia que era muito nova para sair de ao pé dos seus pais, que também não a poderiam acompanhar, que tudo o que tinha feito até aí estava concentrado no facto de ter aquelas rotinas naquele ginásio do clube presidido pela mãe, que era com os seus treinadores que queria continuar a treinar (Marc e Gina Chirilcenco). Não era a única ginasta a utilizar esses argumentos e assim se começava a criar a rebelião que traria efeitos colaterais.

Havia mais. Foi nessa altura que se viu obrigada a ser operada aos dois joelhos (primeiro um, dois meses a seguir o outro) por sofrer de osteocondrite, doença que lhe criava dores no processo de crescimento dos ossos e cartilagens. O médico de família dizia que era apenas o problema de que padecia que criava a situação, os responsáveis da Federação Francesa de Ginástica falavam em treinos mal pensados e desenhados que depois provocavam sobrecarga. A recuperação foi durante, durante mais de meio ano, o regresso desejado foi ainda pior por ter de enfrentar a recusa dos gauleses em voltar tão cedo. Começaram a ser demasiados choques com uma nova via a abrir-se chamada Argélia, o país do pai. Ainda demorou um ano porque França foi tentando de tudo para impedir a troca mas em 2022 a Federação Internacional aprovou a mudança.

Não seria o último choque. Quando foi inscrita nos Campeonatos de África para representar a Argélia, que recebeu de braços abertos a atleta permitindo que mantivesse tudo e com chorudos apoios financeiros para competir pelo país, França voltou à carga e interpôs um recurso para que o ano obrigatório para essa troca fosse cumprido na íntegra. Com isso, Kaylia Nemour não só falharia a primeira prova continental pelo novo país como estaria fora dos Jogos de Paris. Um pouco à semelhança do que tem acontecido com Imane Khelif por diferentes motivos, houve uma espécie de movimento nacional pela atleta que acabou por ganhar um eco positivo quando Amélie Oudéa-Castéra, ministra francesa dos Desportos, desbloqueou a situação.

Agora, chegava o momento da “resposta”. “Levo alguns meses a preparar o movimento e esforcei-me para ir dominando melhor as conexões que são muito complexas, inspiradas nos homens na barra fixa”, explicou em entrevista ao L’Équipe. Este domingo, a atleta nascida em Chinon que estuda pastelaria colocou a cereja no topo do bolo: sexta a entrar na final, com a pressão de um 15.500 da chinesa Qiyuan Qiu e sabendo que Sunisa Lee entraria apenas como oitava e última, Kaylia justificou tudo o que passou com uma exibição quase perfeita que lhe valeu 15.700 e a medalha de ouro entre muita emoção e os agradecimentos aos argelinos que marcaram presença em massa na Arena Bercy. “Merci” soltava para a TV, “Thank you” dizia a Qiu no abraço da consagração. Pode não ter sido como francesa mas o sonho estava concretizado.