O realizador Edgar Pêra cruzou os universos literários de Fernando Pessoa e do norte-americano H.P. Lovecraft num filme construído apenas com recurso a inteligência artificial e que se estreia esta semana no Festival de Cinema de Locarno, na Suíça.

“Cartas Telepáticas” ficciona uma troca de correspondência entre Fernando Pessoa (1888-1935) e H.P. Lovecraft (1890-1937), sobre os quais Edgar Pêra foi encontrando pontos de contacto, desde que os começou a ler na adolescência.

Reconhecendo que os dois autores influenciaram o seu trabalho artístico, por exemplo no cine-concerto “Lovecraftland” ou nos filmes “Caminhos Magnétykos” e “Não sou nada — The Nothingness Club”, Edgar Pêra quis fazer um filme que não só os apresentasse como imaginasse uma troca de correspondência, recorrendo apenas a textos de ambos.

O dispositivo escolhido para o fazer foi através de aplicações de inteligência artificial (IA) de criação de imagem em movimento, o que lhe permitiu escrever, filmar e montar um filme praticamente em tempo real.

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À agência Lusa, na véspera de partir para Locarno, onde apresentará “Cartas Telepáticas” fora de competição, Edgar Pêra explicou que quis aproveitar as potencialidades das aplicações de IA, de utilização comum, que estavam ainda em desenvolvimento há um par de anos.

“Muitas das imagens que lá estão no filme, que têm uma estética dos anos 1960 ou 1980, já não as consigo fazer, porque foram desse período beta em que a criação de imagem em movimento estava ainda muito no início. Todos os elementos estranhos e excêntricos foi o que me interessou mais”, contou.

Em “Cartas Telepáticas” só as vozes são reais, com narração de Keith Esher Davis, Iris Cayatte, Bárbara Lagido e Victoria Guerra. Tudo o resto resulta de uma montagem de comandos de ação indicados por Edgar Pêra, que geraram múltiplas imagens em movimento, cenários, paisagens, algumas grotescas, bizarras, disformes, hipóteses de imagens animadas de Fernando Pessoa e Lovecraft.

“Eu adoro as coisas quando estão no início. Quando apareceu o 3D, eu quis logo experimentar e experimentei câmaras de pequeno formato. O [escritor] Aldous Huxley dizia que os livros são os brinquedos da consciência e eu acho que os filme também são. […] Fiquei totalmente deslumbrado por poder criar imagens a partir de texto”, lembrou Edgar Pêra.

Ao recorrer à Inteligência Artificial — que designa como “Inteligência Animal” —, Edgar Pêra queria ter acesso a um processo inicial de uma ferramenta, “como no cinema”.

“O que me atraiu mais no cinema foi o cinema mudo, as primeiras regras, o cinema soviético, Fritz Lang, Murnau, [D.W.] Griffith [pioneiros do cinema], uma série de autores que hoje não são propriamente falados. Ou o Orson Welles. Esse processo de descoberta é o mais interessante porque toca no inesperado”, sublinhou.

Sobre esta ideia de aproximar os universos literários e biográficos de Pessoa e Lovecraft — que o levou a ler aprofundadamente a obra de ambos —, Edgar Pêra publicou em 2022 um ensaio na revista académica Pessoa Plural, no qual explica que “Cartas Telepáticas” põe em diálogo contos, poemas, ensaios, como se os dois autores estivessem ligados de forma telepática.

É através dessa ficção que Edgar Pêra os coloca a falar sobre cosmos e o fantástico, sobre arte ou moralidade.

“Pessoa e Lovecraft eram seres humanos muito diferentes, mas extremamente complementares, como todos os amigos deveriam ser. Viveram na mesma época, mas nunca se conheceram, e quase de certeza não conheciam as obras um do outro”, escreveu Edgar Pêra.

“Cartas Telepáticas”, produzida pela Bando à Parte, terá estreia em Locarno na quinta-feira e várias sessões nos dias seguintes. Depois deste festival suíço, o filme será mostrado em setembro no MOTELX — Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa.

Segundo Edgar Pêra, “Cartas Telepáticas” também pode ser entendido como uma espécie de prequela filme “Não sou nada — The Nothingness Club“, que é focado nos heterónimos de Pessoa, e de um próximo projeto, intitulado “Espiral do medo”, inspirado em contos de Lovecraft.

Pelo meio, Edgar Pêra, de 63 anos, está a finalizar a série que correalizou com Carlos Amaral, “Daqui houve resistência”, produzida por Rodrigo Areias (Bando à Parte) para a RTP, e avança com a longa-metragem “Vidros nos Asfalto”, a partir de um livro de Manuel Ricardo de Sousa, sobre a organização de extrema-esquerda Forças Populares 25 de Abril (FP25).

O Festival de Cinema de Locarno começa na quarta-feira e termina no dia 17.