Não dá para não reparar em Ramata-Toulaye Sy, realizadora franco-senegalesa de 38 anos que levou, no ano passado, a primeira longa-metragem, Banel & Adama, até ao Festival de Cannes. É alta, firme, sorri perante o nervosismo da passadeira vermelha. Até ao Palais levou atores não profissionais do Senegal, encontrados ao longo de meses num processo de filmagens difícil, que culminou, sob um calor abrasador e uma ou outra tempestade de areia, numa história de amor cheia de realismo mágico, de imagens carregadas de cor e de vida, que logo desaparecem para dar lugar a desejos mais violentos de uma protagonista que choca com a cultura senegalesa. “Aqui tudo é de mais”, diz-nos, numa conversa com vista para o resto do festival, sugerindo que o pedestal que agora conquistou, intimida, mas não a pára.
O filme desembrulha-se num conto complexo de uma jovem que só quer viver a sua paixão. Estreia-se esta quinta-feira, 8 de agosto, nas salas de cinema portuguesas.
[trailer oficial do filme “Banel e Adama”:]
O continente africano, do Sudão ao Congo, nunca tinha tido tantos representantes num dos festivais mais elitistas e ocidentais do mundo, que tem gostado, contudo, de se mostrar aberto a novas linguagens e culturas. Mas Ramata-Toulaye Sy tinha outras razões para estar nervosa: apenas Mati Diop (Dahomey, vencedor do Urso de Ouro deste ano em Berlim), como mulher negra e africana (ambas são também francesas), tinha competido pela Palma de Ouro. Além disso, no ano passado, a realizadora de Banel & Adama defrontou nomes como Martin Scorsese, Wes Anderson ou Ken Loach. Não ganhou — o prémio principal sairia a Justine Triet por Anatomia de Uma Queda. Mas deixou uma marca bem vincada na Riviera francesa.
Em Cannes, estivemos numa mesa redonda com Ramata-Toulaye Sy, tentámos perceber se, apesar da pose destemida e da aparência vistosa, a cineasta teve medo de estar no centro do mundo do cinema. “Sou rigorosa, pacífica, querida, cool, mas muito exigente. Foi assim que fui criada, com o valor do trabalho. Acordar cedo, deitar tarde, foco no que quero. Sou como a Banel (intrepretada pela estreante Khady Mane), deviam ter medo de mim”, disse ao Observador. A resposta veio com um sorriso. Mas Banel & Adama não é para rir: um caso sério de quem esconde os defeitos de uma primeira vez neste patamar, construindo uma história lírica que subverte o tradicional papel da mulher para falar de amor.
Um amor, o de Banel e Adama, que não é aceite na região de Fouta, no norte do Senegal. A vila islâmica, berço dos pais de Ramata-Toulaye Sy, vira-se contra a protagonista, que recusa ceder um milímetro na sua paixão para aceitar as regras do jogo que foram impostas a tantas outras mulheres daquele lugar. Banel não suporta que lhe perguntem quando estará grávida. Não quer seguir os padrões estéticos. Usa o cabelo como quer, sem lenços. Renega os trabalhos femininos. Não aceita as pretensões do amante e as suas obrigações de presumível chefe da comunidade porque é o próximo na linhagem. Só quer sair da vila e construir uma pequena casa para uma vida pacata.
E responde com violência crescente em sintonia com uma seca que assola o país, que mata o gato e deixa toda a gente com fome. É uma anti-heroína negra, traço pouco visto no cinema. O coração aqui não gela, vai ficando vazio, com grãos de areia que cortam qualquer tipo de afeto. Quando a vemos matar um pássaro, duvidamos do seu estado mental. Aí está o realismo. A magia vem na imagem e na esperteza de provocar o espectador sobre o que pensa sobre uma mulher negra destemida. Porque estamos habituados, pela história e também por preconceito, a ter pena de personagens africanas com vidas complicadas, tendência que a cineasta franco-senegalesa quis e quer continuar a contrariar. “Sabia, desde o início, que personagem queria ter, qual a personalidade, mas não queria que fosse óbvio nem demasiado dramático. Queria dar pistas, se não seria só mau guionismo. Quando a vemos maltratar animais, desde uma mosca a um pássaro, percebemos a sua verdadeira natureza”, confessa a realizadora.
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Banel & Adama pode não ter ganhado qualquer prémio, mas a sensação no auditório Louis Lumière, com o maior ecrã do festival, foi a de estarmos a ver um conto cru sem a pressão de ceder a um júri. Sem filtro, sem medos de falta de compreensão do público. Diz-se que o cinema é para ser visto na grande tela, pois bem, Ramata-Toulaye Sy seguiu a norma à risca. A realizadora trabalhou (e muito) a cinematografia do seu filme para que a evolução de Banel pudesse acompanhar a evolução do ambiente à volta. No início, cor, vida, uma transfiguração que podia fazer parte de um sonho — ou, na realidade, de uma versão de uma região tão distante ao comum ocidental. No fim, renega-se a saturação, a vida desaparece, porque o amor não pode acontecer. Aquela comunidade de Pulaar, “honrada e modesta”, não dá espaço para muitas palavras. É no olhar que se cruzam os rumores, a vingança, o conservadorismo que distorce os desejos de Banel.
Há, claro, referências que nos vêm à memória e são destacadas pela cineasta, como os filmes de Terrence Malick ou Moonlight (2016), de Barry Jenkins. Vêm do outro lado do Atlântico e transformam-se numa paisagem árida. Como se a realizadora nos dissesse: agora é a minha vez de tentar. A seca, outro grande tema do filme, que nunca esteve para ser central, liga-se a toda a história. Sob um calor que atingiu os 50 graus celsius, a equipa teve de recriar partes das tempestades digitalmente, e outras foram aproveitadas de acontecimentos climáticos in loco. O laranja que salta à vista é real. A poesia ganha pele. “Queria evocar esse tema metaforicamente. É a Banel que conduz este mundo, que nos mostra o caminho. Quando o seu coração fica mais seco, o ambiente também”.
Quando Ramata-Toulaye Sy nos diz que tem semelhanças com a sua personagem principal, não temos dúvidas, ainda que as suas histórias de vida sejam totalmente opostas. Estudou em Paris, quis ser escritora, dedicar-se à literatura, mas virou-se para o cinema. As raízes africanas vêm de memórias como as viagens de férias escolares que duravam horas, a partir de Dakar, até à terra dos pais, sem acesso a luz. Tirou o curso em La Fémis no ano de 2015 e começou a dedicar-se à escrita de guionismo, tornando-se numa competente scrip doctor [guionista que revê, decompõe e identifica problemas no texto]. Estreou-se aos comandos da realização num dos piores anos de que há memória para quase toda a gente: 2020, com o filme Astel. Antes, co-escreveu dois filmes, Sibel (2018) e Our lady of the Nile (2019). Noutro dos mais respeitados festivais franceses, Clermont-Ferrand (na edição de curtas-metragens), fez-se notar.
Assim que terminou o guião de Banel & Adama, o produtor tentou encontrar quem pusesse em marcha o projeto, mas não conseguiu. Ninguém melhor do que a realizadora para meter mãos à obra. A intenção era clara: quebrar a expectativa que saía do cinema africano. Fazer cinema de género, atacá-lo, sem medo, pegar na ambição e criar uma “experiência artística”. “Foi a minha forma de quebrar as regras”, diz. Quando questionada sobre a forte presença do continente africano em Cannes, Ramata-Toulaye Sy acredita que o tempo das mulheres africanas contarem as suas histórias não é o de hoje. “O tempo das mulheres africanas tem sido o de sempre, o ocidente e os seus festivais é que não têm prestado atenção. Houve uma certa negligência, mas tal como eu, também a Mati Diop é franco-senegalesa, espero que venha uma mulher que seja só do Senegal ou de qualquer outro país africano”, finaliza. Quanto ao realismo mágico desta sua primeira longa-metragem, é para continuar. África tem em Ramata-Toulaye Sy uma ambiciosa representante.