Enviado especial do Observador em Paris, França

Era a grande aposta para a conquista da primeira medalha de ouro de Portugal nestes Jogos de Paris, era ao mesmo tempo uma quase garantia de pódio. A segunda parte confirmou-se. E confirmou-se a tal ponto que, em termos de currículo olímpico, Pedro Pablo Pichardo conseguiu igualar Carlos Lopes como o único a ter uma medalha de ouro e outra de prata nos Jogos. Em paralelo, tornou-se apenas o sexto atleta português a fazer mais do que um pódio depois de Luís Mena e Silva, Lopes, Rosa Mota, Fernanda Ribeiro e Fernando Pimenta. Mas havia mais e foi esse mais que acabou por não ser cumprido quase como se o destino que ia sendo traçado em 2021 e 2022 acabasse depois por não ter confirmação com uma série de mudanças que se foram registando ao longo do ciclo. Ao longo de três horas, todas elas ficaram expostas – e também a parte de uma rivalidade que veio para ficar, mudando nesta altura o protagonista do despique mais pessoal.

Comecemos pela prova. Podemos falar nos saltos iniciais que, com uma chamada bem mais próxima ou que não ficasse quase a 20 centímetros teriam colocado a fasquia nos 18 metros e até podiam ter valido um novo recorde pessoal. Podemos falar também da terceira tentativa que tentou melhorar esse erro técnico, arrancou “o” salto mas acabou por ser nulo. Podemos falar da dor sentida no tornozelo que fez com que prescindisse do quinto salto que seria mais uma oportunidade para reduzir o pequeno fosso de três centímetros para a liderança de Jordan Díaz (em caso de empate, o espanhol ganhava por ter uma segunda marca melhor). Podemos falar daquela última tentativa que parecia ser suficiente mas só igualou os 17,84 que tinha como melhor referência. Entre tudo isso, aquilo que se foi percebendo é que cada vez mais as indicações que vêm da bancada já não são do pai, Jorge, mas sim do novo técnico com quem tem vindo a trabalhar.

Durante todo o concurso que teve início às 20h13 no Stade de France, Pichardo esteve sempre na zona que marcou como espaço de conforto. Sentava-se num banco onde estavam também fotógrafos, ia ouvindo as indicações que vinham da bancada, só mesmo antes do salto se encaminhava para aquela zona para fazer um curto aquecimento e realizar a sua tentativa. Apenas a dor sentida no tornozelo esquerdo quando fez o quarto salto mudou um pouco essa rotina, ficando sentado a rezar quando prescindiu da quinta tentativa sabendo que só teria mais uma oportunidade para ir buscar o ouro. Não conseguiu. Às 21h34, Jordan Díaz abdicava do sexto e último salto porque já tinha o ouro, fazendo a festa junto à bancada onde estavam concentrados mais adeptos espanhóis antes de ir também ao treinador, Iván Pedroso. Pichardo não saiu “dali”.

Já com uma enorme bandeira portuguesa pelas costas, que pelo tamanho até parecia ser a mesma que usou em Tóquio após sagrar-se campeão olímpico, foi ficando sempre por ali. De quando em vez olhava de lado, ainda cumprimentou o agora italiano Andy Díaz Hernández, continuou focado em criar quase um biombo mental em relação a tudo o que se estava a passar ao lado. Entre a tristeza de não ter chegado ao ouro e a alegria da conquista da prata, a primeira continuava a imperar. Ainda foram largos minutos nisto, com o português a deixar apenas aquele seu espaço quando tinha a garantia de não ter de cruzar-se nem sequer com os olhos com o atleta espanhol. Às 22h02, Pichardo começava a falar na flash interview da RTP. Não poupou nada nem ninguém, como também faria na zona mista. Não era altura para isso. A chegada à zona mista da imprensa ainda teve uma passagem pelo OBS, às 22h27 chegava ao nosso local.

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“Na qualificação não falei, prometi que ia falar depois da final, estou cá”, começou por dizer, enquanto ia cumprimentando um a um todos os jornalistas portugueses. “Falamos em português ou espanhol?”, ainda perguntou antes da primeira questão em português, claro. E Pichardo falou numa condição que em grandes provas só aconteceu nos Mundiais de Doha-2019, quando falhou o pódio, e nos Europeus de Roma-2024, quando perdeu o título para Jordan Díaz mesmo a bater o recorde mundial. “Foi um ouro perdido e foi um ouro perdido por dois centímetros. Estava a saltar a 20 centímetros da tábua, bastava apenas acertar na tábua e acho que ganhava. Nestas competições não se podem cometer erros, eu cometei vários e infelizmente perdi a medalha de ouro. Custa perder assim, tenho visto a trabalhar muito desde os Europeu, prometi isso a mim mesmo para demonstrar que era o melhor atleta do triplo salto mas não aconteceu, fiquei a dois centímetros. É a vida, não se pode cometer erros e hoje acabei por cometer vários, é assim…”, frisou.

“O erro mais importante acabou por ser acertar na tábua. Os dois primeiros saltos estava a saltar a 17,84 e a 20 centímetros da tábua, então isso era a prova de que bastava saltar mais cinco centímetros ao pé da tábua e já ganhava. Não aconteceu. Sempre acreditei no último salto que conseguia ultrapassar o Jordan porque a margem era mínima, dois centímetros. O treinador já me tinha dito também que era só acertar na tábua e conseguia. Sempre fui à procura, sempre tive a certeza de que conseguia mas esse salto não saiu. Antes tinha prescindido do quinto salto porque no quarto porque quando fui fazer o step jump acho que apoiei mal e senti uma dor no tornozelo esquerdo. Por causa de um mau apoio pensava que tinha uma lesão e pedi ao mister para prescindir do quinto para ver se a dor passava. Graças a Deus passou e foi ao último salto”, explicou, sem nunca abrir especificamente o livro sobre o trabalho desenvolvido com o novo técnico.

“A preparação foi muito boa, estava a fazer grandes saltos nos treinos, estava tudo a correr bem mas hoje não saiu, não sei se foi pela questão da tábua, se por a pista estar a molhada… Não sei, não vou à procura de desculpas porque não saiu. Estava muito, muito bem mas o salto não saiu”, assegurou Pichardo, que de seguida abordou algo que tinha sido levantado na RTP: a possibilidade de terminar o percurso no atletismo.

“Final da carreira? Eh pá, é uma sensação muito complicada… Há uns anos atrás tinha prometido à minha mãe que ia acabar nos Jogos Olímpicos de Los Angeles mas os últimos anos têm sido complicados, com os problemas do clube, lá em Portugal também não temos apoios, o Governo também só olha para o futebol. Nós somos atletas, temos de estar aqui mas não temos apoio nenhum. Tenho, graças a Deus, o apoio de um patrocínio que é a Puma… É complicado, ok? Também tenho tido problemas com o clube e já não tenho esse grande apoio que tinha no começo. Tenho perdido aquela emoção e aquela felicidade que tinha pelo desporto e ando a pensar aposentar-me, tipo a partir de hoje… O meu pai, que é o meu treinador principal, tem vindo a falar comigo, a minha esposa, a minha mãe, dizem para pelo menos acabar a época e pensar se continuo ou não mas o que está na minha cabeça é ficar já aqui, parar por aqui e ter sido a minha última competição… Não sei, ainda continuo a falar comigo mesmo… A saúde está boa, ainda tenho 31 anos… Eh pá, não sei, ainda vou pensar…”, apontou o triatleta, que voltou a carregar em todos os alvos das críticas.

“Ter um adversário como o Jordan dá-me motivação, isso sim. Por acaso são coisas que eu gosto mas quando chego a casa, a Portugal, tenho de lidar com aquelas dificuldades todas, a cabeça já não aguenta… É como digo às vezes, também já estou velho, tenho três filhas, uma família, 31 anos, já não sou aquele jovem que vai treinar com a mesma emoção do começo, penso em ir treinar com uma boa estrutura. Tenho chegado até aqui e conquistei resultados para ter uma estrutura hoje e infelizmente está difícil. Agradeço o apoio da Câmara de Setúbal, da Federação por exemplo, agradeço muito, mas as coisas não têm corrido bem”, referiu, antes de especificar mais uma vez a cultura da prioridade ao futebol que já antes levantara.

“Melhorar essas condições? Eh pá temos de falar com o Governo, temos de falar com o clube, temos de ver isso… O primeiro-ministro está cá? Não o vi… Seria bom, tipo sentar com ele e ver se conseguem dar apoio aos atletas fora do futebol. Seria bom ou nunca mais temos ninguém. O que pedia? Apoio. Ao Governo, ao primeiro-ministro, ao Presidente, apoiem também a nós. Eu sei que aqui em Portugal é só futebol e tal mas somos atletas, também precisamos de um bocadinho. Não pedimos muito, é só um bocadinho daquilo que dão ao futebol. Resolver a situação com o Benfica? Espero reunir com o presidente em breve, quando chegar a Portugal reunir o mais rapidamente possível para ver se arranjamos uma solução, a ver se a diretora do clube me deixa em paz, a Ana Oliveira”, salientou, na primeira crítica mais direta à responsável de todo o projeto olímpico dos encarnados e que está também ligada há muito ao atletismo do conjunto da Luz.

“Poder ser o primeiro a ganhar dois títulos olímpicos por Portugal é uma das motivações que tenho e ter aqui o Jordan que já me ganhou duas vezes também é outra mas chegar a casa, sair de casa, chegar ao treino, ter o mister e o meu treinador, ter uma pista que não está em boas condições… A Câmara de Setúbal faz o possível, liga para o clube para pedirmos apoio, não temos apoio, é preciso arranjar os buraquinhos na pista que não está boa, a caixa da areia não está boa, o ginásio não está… É complicado, de segunda-feira a sábado aquele treino com faltas de apoio, treino… Não é fácil… Vou tentar reunir com os responsáveis o mais depressa possível a ver se encontramos uma solução, se me deixam sair…”, voltou

“Eu gostaria de continuar a treinar em Portugal, de viver em Portugal e de continuar o Benfica mas também gostaria de ter condições também. Acho que mereço por tudo o que conquistei ter uma estrutura de treino bem formada, ok? Infelizmente não tenho, treino num sítio, depois tenho de sair de lá à procura de um sítio… A Câmara de Setúbal faz-me o favor de me dar condições mas também não é obrigação deles, a Federação também… Tem sido complicado, difícil… Eu gostaria de continuar no Benfica mas obviamente tendo melhores condições e como já disse, ter um apoio que permita que a diretora me deixe em paz, que a Ana Oliveira me deixe em paz. Vou treinar, represento o clube mas nada a ver com a diretora do atletismo do Benfica. Porque não reuni ainda? Tem sido difícil, está ocupado… Tenho tentado mandar-lhe mensagens, antes de vir para aqui recebi mensagem do presidente e combinámos que iríamos reunir quando voltasse e agora vamos tentar encontrar aqui um acordo”, concluiu Pedro Pablo Pichardo na zona mista.

Nessa altura eram 22h37. Jordan Díaz falava uns passos ao lado à imprensa espanhola, com Pichardo a voltar a passar de forma olímpica pelas costas do adversário sem uma única palavra. Nessa altura o atleta estava a procurar onde era a entrada para o controlo anti-doping, da nossa parte o melhor seria rumar à conferência de imprensa porque todos os medalhados são obrigados a passar por essa última intervenção. “Pedimos desculpa, ainda estamos à procura do atleta Pedro Pichardo, não sabemos onde está”, referiu o responsável da comunicação ao microfone para toda a sala. Por volta das 23h, a conferência começou mas apenas com dois dos três medalhados e a cadeira do português vazia com o seu nome em cima da mesa.

Quando foi questionado sobre a “luta bonita” que tinha travado e que lhe tinha valido a primeira medalha de ouro olímpica contra Pichardo depois do triunfo nos Europeus, nenhuma resposta. “Oh madre mia, por favor… Estamos a competir… Que pergunta é essa? Podes fazer outra, vá”, atirou. Aqui não se tratava de falar ou não de uma rivalidade, de um despique, de um duelo, de algo pessoal, era falar de uma competição onde o antigo e o agora campeão olímpico ficaram com dois centímetros num concurso com dois saltos entre os 17,86 e os 17,81. Díaz, ele próprio, levou a questão para esse sentido. Mais uma vez. E não respondeu.

Mais tarde, tendo em conta que a conferência decorreu sempre sem a presença de Pedro Pablo Pichardo, a dúvida: o que terá acontecido? De acordo com o Comité Olímpico de Portugal, houve um erro por acharem que a conferência seria apenas este sábado, por altura da cerimónia de entrega de medalhas. Aí, sem uma hipótese de fuga, o português e o espanhol terão de estar mais perto do que gostariam de estar e muito provavelmente tirarão as fotografias juntos que esta noite não aconteceram. Três horas depois, Pichardo já tinha deixado o Stade de France com essa garantia de que nada voltará a ser como antes depois do que disse e colocou em causa e também de uma rivalidade que está a consumi-lo dentro e fora da pista.