Enviado especial do Observador em Paris, França

Era a única imagem que faltava conhecermos, era também aquela imagem que Fernando Pimenta nunca quis ou até pensou que pudesse aparecer. Depois de dobrar os 500 metros da final A do K1 1.000 a liderar a prova e a cumprir aquilo que tinha desenhado como estratégia de prova depois de uma meia-final onde pareceu ir sempre muito confortável e de botão de “economizador de energia e dados” ligado, houve uma falência total de sistema. Naquela parte da bancada onde começamos a ver os atletas sem serem um ponto lá ao fundo (são os ecrãs gigantes ao lado que permitem ver o andamento da prova até esse ponto), aquilo a que estávamos já habituados era ver o canoísta de Ponte de Lima. Já ganhou, como aconteceu no ano passado no Mundial de Duisburgo, já perdeu – e por “perder” é ir ao pódio sem ouro – mas era quase uma imagem de marca.

Aquelas veias dos braços definidos até podiam rebentar mas, assumindo que houve sempre um capítulo da carreira de Pimenta em que partia melhor do que acabava, nunca baixava a guarda. Em Paris, sobretudo a partir dos derradeiros de 250 metros, baixou. Rendeu-se. Estava rendido. Foi quase como se aquela pequena reserva de um depósito que vai a dar tudo mas encontra sempre 10% a mais do que está indicado tivesse entrado em total falência. Aqueles foram os 57 segundos mais longos da carreira do português com mais títulos internacionais de sempre do desporto nacional. Não era do vento, não era do barco, não era da pista. Era ele, só ele, a lutar contra si perante a impossibilidade de lutar contra os outros como nunca lhe tinha acontecido na carreira. Quando Uladzislau Kravets e Agustín Vernice passaram para os lugares não de pódio mais à frente, o ultrapassado não era aquele Fernando Pimenta mas sim a sua sombra, o seu fantasma.

Ficar em quarto, quinto ou sexto era igual porque no léxico de campeões só há dois lugares: ouro ou pódio. Pimenta apostava tudo no ouro, quase a adivinhar que daqui a uns anos poderia tal a ter falência no ponto em que menos se esperasse. Era o dia para a história, tornou-se apenas um dia numa história que recusa dar por fechada mas sem a convicção com que falava de Paris em Tóquio. Los Angeles está longe, muito longe. Como ele é, há muito que a palavra impossível desapareceu do léxico. No entanto, e como ouviríamos depois da boca do próprio, há uma parte de razão que começa a superar o coração ligado a um pulmão inesgotável. Numa carreira como a de Fernando Pimenta, a falta de um título olímpico não é uma falha – é um lapso. Algo que devia acontecer mas nunca aconteceu pelos mais diferentes contextos. Não apaga os pódios sem fim, não dá a última demão dourada a um percurso feito de tudo o que é metal que chegue ao pescoço.

Pimenta saiu de Paris sem o peso de uma medalha mas também sem qualquer peso na consciência. A certa altura quase que ironizava dizendo que nos ciclos em que trabalhou mais, como este ou o do Rio, foi onde ganhou menos. No entanto, aquilo que mais impressionou foi a forma como reagiu ao sucedido depois de todo o desalento com que terminou a prova de cabeça para baixo numa imagem que em si não encaixa na figura de derrotado. Foi isso que se viu já com os ânimos mais calmos – as lendas também se fazem daquilo que não chega aos resultados, que não tem forma mediática, que não vai ficar gravado no currículo que vai sempre ganhando linhas para acrescentar algo. Fora da água, Pimenta deixa Paris como uma lenda.

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“Acho que trabalhei mesmo muito, fiz muito provavelmente uma das melhores épocas tal como no Rio de Janeiro… Acho que quanto mais me esforço, mais depressa o resultado desaparece. Não posso estar desiludido ou triste comigo, tenho a consciência tranquila de que dei o meu melhor. Passei muito tempo da minha família, longe dos meus pequeninos, abdiquei dos meus filhotes muitos dias, acho que com eles só estive um mês no último ano, se tanto… Consegui falhar as festinhas de escola da minha filha praticamente todas, isso como é óbvio parte-me o coração, e depois chegar aqui e não conquistar o resultado que tínhamos ambicionado… O resultado não é o espelho do meu trabalho, os outros que venceram têm todo o mérito. Se a prova fosse mais cedo ou mais tarde, o resultado tinha sido diferente. Na meia-final senti-me muito bem, muito tranquilo, confortável”, começou por dizer numa zona mista muito “racional” de cerca de dez minutos.

“Durante a prova senti-me a controlar, a fazer tudo o que o treinador tinha pedido, a tentar a lançar sempre o caiaque, a pressionar à frente. Infelizmente na parte final faltou-me força, faltou-me energia e acabei afastado do pódio. Só tenho de estar agradecido a todos portugueses que estavam aqui e em Portugal a apoiar, acho que reconhecem o esforço que tenho vindo a fazer, o legado que tenho vindo a conquistar, e agora é hora de desanuviar a cabeça para voltar ao trabalho para a semana. O que senti nos metros finais? Senti impotência, senti frustração, porque queria e tentei dar mais mas o corpo não respondia. Comecei a desequilibrar, a apanhar com as ondas do checo, tentei mais mas o corpo não respondia. Quando sabemos que a nossa capacidade não era aquela e que conseguíamos mais um bocado, é um sentimento de frustração mas, por outro lado, de consciência tranquila”, explicou o canoísta de Ponte de Lima sobre a final.

“Já sabia que o Dostal estava bem em termos físicos e que ia dar bastante luta, que ia tentar uma estratégia diferente do que ele costuma fazer. Na última vez que ele me superou foi dessa forma. Tentei não deixar que ele avançasse  mas na parte final não aguentei. Depois foi tentar chegar o mais inteiro possível à meta e tentar o melhor resultado possível…”, acrescentou ainda sobre as sensações naqueles metros finais.

“Primeiro com três medalhas olímpicas? Sim, quando conseguimos a final claro que passou pela cabeça aí porque estava a sentir-me muito bem, trabalhei bastante e estava em condições para fazê-lo. Infelizmente não consegui, se a final voltasse a ser repetida daqui a algum tempo se calhar conseguia uma resultado diferente. Até ao momento, desde que acabou a prova, não houve nenhum treinador das outras seleções que não tivesse dito que merecia melhor e que para eles continuava a ser um dos números 1 da canoagem mundial. Quando assim é, quando temos o reconhecimento das equipas técnicas das outras federações com grande peso na modalidade, só temos de estar contentes e felizes com o que conquistámos”, apontou, antes de olhar para as duas finais do K1 1.000 em que não foi ao pódio, no Rio de Janeiro e agora.

“Final mais frustrante? As duas, as duas muito frustrantes… Uma porque foi um fator externo que me retirou o acesso à medalha, muito provavelmente já podíamos estar a falar de um Fernando Pimenta que tinha três medalhas e que se calhar tinha condições para lutar pela quarta. Agora, fui eu. Fui eu. Foi o meu corpo que cedeu na parte final da prova. Nos últimos 250 metros o corpo já não respondia ao que eu queria. Senti que o barco começou a perder velocidade e já não me conseguia lançar novamente. Foi isso, a frustração de não conseguir mais e melhor”, voltou a assumir, sem qualquer “desculpa” sobre o sucedido.

A certa altura da conversa, Lisa Carrington, multimedalhada da Nova Zelândia que voltou a sair de Paris com três ouros no K1, no K2 e no K4, passou por trás de Pimenta, colocou-lhe a mão no ombro e deu quase um conforto extra ao português enquanto falava. De chapéu, equipamento, chinelos e umas proteções elásticas nos dois gémeos que não tirou depois da prova, agradeceu com a cabeça. A frustração de falhar o título e o pódio já não o consumia tanto como quando entrou na tenda de apoio após encostar o caiaque e aquela espécie de reconhecimento fez com que enchesse ainda mais o peito à luz de um currículo sem fim.

“Ainda há 15 dias durante o Mundial de Sub-23 recebi mensagens de colegas meus, quer portugueses, quer de outros atletas que treinam comigo durante o ano, grandes ícones da canoagem mundial que estão agora a chefiar as equipas técnicas de grandes seleções como Austrália e Hungria, que diziam que eu era a lenda. E eu olho para eles e penso ‘Então mas estes gajos é que são os campeões olímpicos e estão a dizer que o Fernando Pimenta é que é a lenda?’. Resumindo, deve ser porque sou um atleta polivalente, que tanto faz velocidade como maratona, consegue resultados nas mais diversas disciplinas e sem dúvida que tenho construído um bom legado. Como amigos e colegas me têm dito, um atleta não é só feito de resultados desportivos, é também feito pelo seu legado, pela sua personalidade e depois também por outra coisa que tenho vindo a construir que é a família. Há muitos atletas que conseguem construir uma grande carreira desportiva mas depois não conseguem construir uma família e eu felizmente estou a construir uma família bonita e sólida. Essas são as medalhas mais importantes que posso ter”, contou.

Mas será que a lenda ainda tem força para um último capítulo em termos de Jogos? “Acho que sim… Antes dos Jogos disse que tinha colegas meus que me iam dizendo que se fosse campeão olímpico podia terminar a minha carreira para sair pela porta grande e a minha resposta foi sempre que não precisava de ganhar mais nada para sair pela porta grande, o meu currículo e tudo o que já conquistei, os nove títulos mundiais, os nove ou dez títulos europeus já me permitem terminar quando achar que deve ser. Agora é refrear a cabeça, dar um abraço à minha família, repousar um bocadinho e espero voltar ao trabalho na próxima semana porque a época ainda não acabou. Tenho grandes compromissos com Portugal e com os portugueses até ao final de setembro, tenho um Campeonato do Mundo de distâncias não olímpicas agora no Azerbaijão daqui a 15 dias e depois o Mundial de maratonas no final de setembro. Não consegui a medalha olímpica mas acho que ainda posso estar na luta por umas medalhas mundiais até ao final da época”, disse.

“Agora é estar com a família, desfrutar da família porque foi aquilo do qual abdiquei imenso e é a parte que mais me custou até hoje, do meu filhote, da minha filhota porque eles também sofreram imenso como devem calcular entre choros e sorrisos, contra voltava a casa. Isso é o que mais me custa, estar longe dos meus filhotes, ver a minha mãe ser pai e mãe ao mesmo tempo a aguentar o barco e agora é estar um bocadinho com eles, agradecer o apoio e voltar à água para fazer umas desforras. Vale o que vale, aqui é que valia, aqui é a medalha que todos queriam mas a cabeça está tranquila. É respirar e voltar ao trabalho”, concluiu numa última resposta que lhe foi toldando mais os olhos à luz da emoção. Aí, Pimenta aguentou as lágrimas; pouco depois, não aguentou. Após sair daquela zona, a lenda assumia o seu papel nos bastidores.

Sempre acompanhado por Ricardo Machado, vice-presidente da Federação Portuguesa de Canoagem, até na zona mista entre RTP e Antena 1 e restante imprensa escrita, o canoísta ainda ficou uns minutos à conversa na zona onde estão os caiaques quase “expostos” após a prova (mais para a frente fica o estaleiro onde cada uma das equipas tem o seu material) mas seguiu em direção à zona das bancadas também com o líder da Federação, Vítor Félix. Ao virar os dois gradeamentos com proteção que não permitia ver para o outro lado, Pimenta voltou a ter a capa de super herói e foi saudado numa longa salva de palmas não só por portugueses que estavam nas bancadas mas também por elementos de várias delegações que estavam ali. Da Espanha. Da Alemanha. Da Dinamarca. Da Polónia. O abraço com a mulher Joana era envolvido num ambiente de homenagem não pelo que fez na final mas pelo que conseguiu alcançar até chegar a esta final.

Quando chegou a Paris, Fernando Pimenta não quis fazer qualquer promessa de medalhas ou de título, com um aliviar de pressão ao dizer que a única promessa que tinha feito era de amor eterno à mulher. Foi nela, aquela figura que descreveu como pai e mãe ao mesmo tempo enquanto dá tudo pela canoagem, que se foi refugiar depois da desilusão olímpica e aí as lágrimas não conseguiram ser contidas. Não foi um aplauso ou uma salva de palmas qualquer. Quando atletas campeões ou medalhados passaram por ali, havia palmas, a euforia, mas depois tudo acalmava. Com o português, parecia não ter fim. Parecia ser um momento que ia juntando todas as palmas recebidas ao longo da carreira. Depois, o outro momento que queria.

Margarida, a filha mais velha que foi homenageada com uma chucha que Pimenta tirou do bolso no pódio de Tóquio, estava no carrinho distraída com o telemóvel e não ia seguindo com atenção todo o ruído à sua volta. Santiago, o mais pequeno, veio para o colo do pai. Olhava com um ar meio espantado em frente porque o canoísta tinha colocado os óculos para baixo como que a querer disfarçar uma emoção que era visível em todos os outros sinais e o filho via a sua imagem refletida. Depois, sem óculos, sorria. Aquela também era uma medalha para o atleta, que ia respirando fundo depois do carrossel de emoções enquanto havia familiares a chorar atrás de si com o consolo de Vítor Félix. Podiam ser lágrimas de alegria, caíam de tristeza.

Aquilo a que assistimos ao longo de vários minutos sem parar, já uma hora depois de uma final que terminou às 13h25 (começou com um atraso de dez minutos face à hora inicialmente prevista), foi quase um “luto” que se viveu e foi ultrapassado aos poucos. Nos próximos dias, enquanto passar tempo com a família, Fernando Pimenta ainda estará a pensar naquilo que não atingiu em Paris; depois, quando voltar aos treinos, vai de novo focar-se naquilo que ainda tem mais para ganhar sem que precise disso para ser um dos maiores da modalidade. Vimos um responsável com uma camisola que tinha o símbolo da Polónia no lado esquerdo do peito e a assinatura de Fernando Pimenta em tamanho grande no lado direito. Vimos atletas da Alemanha, da Dinamarca ou de Espanha, entre outros, a irem abraçar o português e a tirar fotos com ele. Vimos treinadores a colocarem as mãos na cara dizendo para não desistir porque será sempre um campeão. Vimos adeptos a fazer fila por autógrafos e selfies. Vimos alguém que perdeu mas é uma lenda.